JOÃO OTÁVIO BRIZOLA: "Para meu pai, fazer política era fazer do jeito que ele queria”
Nota DefesaNet, Publicamos a excelente entrevista de JOÃO OTÁVIO BRIZOLA dada à jornalista Dione Kuhn do jornal Zero Hora. Uma imagem do homem, esposo, político e importantes revelações sobre a tentativa de Leonel Brizola criar uma guerrilha desde o Uruguai e o financiamento de Cuba. Terminando com as relações Brizola - Lula e a influência de José Dirceu. O editor |
DIONE KUHN
O arquiteto João Otávio, 61 anos, é o único filho de Leonel Brizola que sempre fugiu dos holofotes e da imprensa. Ao contrário de seus dois irmãos, José Vicente – o mais velho, morto em 2013 – e Neuzinha – a mais nova, morta em 2011 –, nunca brigou ou desafiou publicamente o pai. Era o filho com quem Brizola, nos últimos anos de vida, vinha conversando, reavaliando decisões políticas, como se estivesse fazendo um inventário de sua trajetória. Brizola foi prefeito de Porto Alegre, deputado e governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro. Morreu há 10 anos, em 21 de junho de 2004, aos 82 anos, vítima de infarto. Por ser testemunha privilegiada de momentos cruciais da vida do pai, João Otávio decidiu escrever um livro de memórias – ainda sem editora. Pai de João Eduardo, João Otávio vive hoje entre o Rio de Janeiro e o Uruguai, onde administra a fazenda que era da família e uma academia de ginástica. É incentivador da carreira política dos sobrinhos, a deputada estadual gaúcha Juliana Brizola, o vereador do Rio Leonel Brizola Neto e o ex-ministro Carlos Daudt Brizola (conhecido por Brizola Neto). Os três são filhos de José Vicente. Durante passagem por Porto Alegre, ele aceitou, pela primeira vez, dar uma entrevista. Falou por duas horas com ZH sobre a relação com o pai, os problemas da família, e os erros e acertos de Brizola.
Por que escrever um livro sobre seu pai?
Eu tinha uma história para contar. Não tem mais muitas testemunhas vivas para falar de todos os períodos da vida de meu pai. Minha mãe e meus irmãos (José Vicente e Neuzinha) já morreram. Resolvi contar do ponto de vista de nossa relação.
Ser filho de Brizola ajudou ou atrapalhou?
As duas coisas. Ajudou no crescimento profissional. Eu soube aproveitar as oportunidades que me foram dadas. Mas tem um legado desagradável de ser filho de um político de esquerda, particularmente dele. Tudo o que se fala e se falou de Brizola é política pesada. É política a ferro e fogo. Ou amavam ou detestavam ele. Era assim no Rio e no Rio Grande do Sul. Ainda que no Rio Grande do Sul ele tenha se transformado em figura histórica respeitada já anos antes de morrer. O que não acontecia no Rio. O legado negativo é toda a falta de ter um pai, a dificuldade de relacionamento, associada a cobranças e ameaças para que fôssemos perfeitos.
Como eram essas cobranças e ameaças?
Meu pai e minha mãe (Neusa Goulart Brizola) eram pessoas muito diferentes e, ao mesmo tempo, muito iguais. Eles se amavam muito, mas cada um tinha seu gênio. Ela vinha de uma família rica, sempre teve tudo que quis. Quando tinha 22, 23 anos, o pai dela morreu. Minha mãe teve de assumir os negócios da família junto com meu tio Jango (João Goulart, ex-presidente da República). Era uma moça bonita, elegante, inteligente e rica. Meu pai veio de família pobre, formou-se à custa de muito trabalho e se fez sozinho. O casamento tinha amor, mas também teve muita conveniência política. Ela tinha surtos de poder, e ele querendo conter isso. Ela estava acostumada a ter empregados. Na fazenda, eram mais de 20 famílias que viviam ali pela comida, coisas do período da escravidão. A família Goulart era vizinha de Getúlio Vargas. Tudo isso proporcionou um mundo de prosperidade e de poder para minha mãe e para o tio Jango. Por isso minha família tinha contradições muito grandes.
Que contradições?
Minha mãe queria uma coisa e meu pai queria que a gente parecesse outra. Quando pequenos, morávamos na Rua Tobias da Silva (bairro Moinhos de Vento). Toda a família da minha mãe frequentava o Leopoldina Juvenil. Mas nós tínhamos de ir para o Grêmio Náutico União porque era mais popular. Quando o pai virou governador, foi ainda pior. Ele queria que fôssemos a um clube ainda mais popular, o Grêmio Náutico Gaúcho. Lembro que teve uma competição de natação de 50 metros. Fui participar todo animado. Só tinha um na raia, geralmente se colocavam uns cinco ou seis na raia. Esse único que competia parou na metade da prova para deixar eu ganhar. A mãe se deu conta e ficou furiosa. Ela disse “vocês nunca mais pisam aqui”. Tudo porque tínhamos de fazer a imagem. Todos da família da minha mãe eram gremistas históricos. Nós tínhamos de ser colorados para parecer mais populares. E todas essas contradições apareceram mais tarde, criando problemas para mim e para os meus irmãos.
Que tipo de problemas?
De se rebelar contra ele. Eu, talvez, tenha tido um destino diferente dos meus irmãos por causa de minha madrinha, a dona Mila Cauduro, que me influenciou muito. Já o José Vicente e a Neuzinha se rebelaram muito contra o pai. Esse foi o lado ruim. O pai sempre dizia que tínhamos de lutar para conseguir as coisas, porque ele lutou, mas não se dava conta de que morávamos num palácio. Era outra realidade. E a minha mãe lutando contra isso, contra esse lado forte dele. Era difícil.
E o lado bom dos pais?
Sem dúvida que houve. Minha mãe era muito carinhosa. Ele também sabia ser quando queria.
Brizola se dedicava aos filhos?
Muito pouco. Quando morávamos em Porto Alegre, geralmente os domingos eram dedicados à família. A imagem que ficou é do pai e da mãe discutindo, e era muito desagrádável. Ele adorava acampar no alto do Morro da Polícia. Uma vez, quando era prefeito da cidade, parou numa estrada que cruzava por Gravataí ou Viamão, não lembro bem. Parou na esquina e montou acampamento, fez fogo. Passamos a noite numa barraca (risos). Meu pai era um homem do campo. E a minha mãe era a dona do campo. Essa é a história.
Eles brigavam muito?
Muito, tinham fúrias. Principalmente depois que fomos para o exílio. Ali os problemas afloraram. Eles não se davam conta, mas em Porto Alegre a gente estudava num colégio de primeira, o Farroupilha. Chegamos a Montevidéu e fomos para um de terceira categoria. De repente, estávamos num colégio onde as pessoas até roubavam dos outros. Não sabíamos direito o que estava acontecendo. Foi um choque. Não tínhamos documentação, então tivemos de ir para onde nos aceitavam. Como escrevo em meu livro, passamos de principal família dirigente de um país para bandidos fugindo da lei. Já meus primos, filhos do Jango, foram para um colégio americano. Acho que toda a natureza das histórias de contradição vem daí. Pensando bem, minha mãe casou com meu pai para fazer frente ao Jango. Já Jango casou com a Maria Thereza para fazer frente à família dele. Maria Thereza não era a pessoa que os Goulart queriam. Ela mesma dizia que caiu de paraquedas. Vai entender.
Ao contrário de José Vicente e Neuzinha, você sempre fugiu dos holofotes. Por quê?
A Neuza Maria sempre foi problemática. Era a queridinha de meu pai, filha mulher, acostumada a ter tudo o que queria. Quando era contrariada, queria virar a mesa. E assim cresceu. Lá pelo quarto ano de exílio, tive de ir para a Inglaterra fazer uma cirurgia no fêmur, e ela foi junto. Ficou interna num colégio. Lembro que fomos visitá-la, certa vez, e Neuzinha tinha engordado muito.
A mãe ficou apavorada, quis tirá-la de lá, pois estava achando horrível. Acho que foi um erro da mãe, ela estava engordando mas não tanto assim. E a Neuzinha não queria sair de lá, estava se sentindo bem. Acabaram levando de volta ao Uruguai. Colocaram a Neuzinha numa escola britânica em Montevidéu. De lá, ela foi expulsa e nunca mais engrenou. Em seguida parou de estudar.
E José Vicente?
Com ele foi diferente. A briga dele com o meu pai sempre foi mais política. O Zé Vicente sempre foi muito desastrado, não conseguia fazer as coisas direito, parou de estudar. Chegou a ser deputado federal (eleito em 1990), mas numa época em que meu pai elegia até um poste. Não me dava muito bem com ele, embora nunca tenha rompido. Com minha irmã, a relação era mais fácil.
As loucuras dela não eram comigo, eram mais para atingir meu pai. No Brasil, bem ou mal, tínhamos uma vida traçada. Depois do golpe militar, tudo mudou radicalmente. Minha mãe várias vezes entrou em crise. Talvez meus pais não tenham se dado conta de que nós não éramos eles, que a gente ia sofrer com toda essa mudança. Faltou um pouco de psicologia.
No início do exílio, Brizola tentou voltar por meio da guerrilha. Como foi esse período?
Ele conspirou muito, recebeu dinheiro, não tenho dúvida disso.
Dinheiro do governo de Fidel Castro?
Certamente, até porque não tinha outro para dar. Cuba era o país que estava deixando o mundo nervoso. Meu pai se agarrou no primeiro cipó. Durante os primeiros quatro meses, estava tudo tranquilo. Meu pai e Jango eram muito amigos, se frequentavam o dia inteiro. Mas o pai querendo conspirar. Tinha um grupo político forte lá, de umas 300 pessoas. Darcy Ribeiro e Waldir Pires foram a Cuba fazer essa gestão (de buscar o dinheiro para a organização da guerrilha). Quando eles voltaram, lembro que era tudo em moedas de 50 pesos mexicanos. Eram umas moedas de ouro. Não sei como era o trato disso. Ele montou em uma chácara perto de Montevidéu um centro de treinamento de guerrilha.
Você chegou a frequentar essa chácara?
Fui umas três, quatro vezes. Eram os piqueniques de domingo. Esse era o motivo. Daí eu via que tinha armas lá. Ele me ensinou a atirar, eu atirava em pombas. Mas logo depois me desinteressei. Várias vezes chegavam cargas de armas lá. Uns três meses depois, ele brigou com meu tio de forma definitiva, romperam publicamente.
Como foi esse rompimento com Jango?
Segundo meu pai contava, ele tinha um plano de explodir o entreposto da DEAL (Departamento Estadual de Abastecimento de Leite), em Porto Alegre, tinha toda uma operação montada para isso e que foi abortada. E o Jango foi contra essa operação. Lembro da minha mãe dizendo que o irmão dela não participaria e que ela não queria que meu pai também participasse. E aí romperam.
Só reataram em 1976, pouco tempo antes de Jango morrer. Meu pai começou a deixar o governo uruguaio muito nervoso, a pressão do governo brasileiro para confiná-lo era grande. Acabaram confinando ele no balneário de Atlantida (nas proximidades de Montevidéu). Isso foi em fevereiro de 1965. Era um balneário deserto. Em seguida, meu pai alugou um edifício, tinha uns 20 apartamentos. Era a base perfeita, ele driblava a polícia uruguaia. Lembro dos movimentos estranhos. A empregada tinha de entregar 20 pratos de comida, dar três batidas na porta e depois sair correndo porque não podia ver quem estava lá. Nós éramos totalmente proibidos de ir do sexto andar para cima.
Você presenciou alguma cena da guerrilha?
Teve um episódio em que ele me chamou para ir junto. Foi numa praia, à noite, ao fundo uma luz piscando. Daí surge uma lancha de motor rápido e encalha na areia. Começaram a baixar caixas de armas, entregaram um saco de dinheiro para um cara, a lancha voltou para junto do barco que fazia sinal, e a gente foi embora. Eu perguntava o que estava acontecendo. Meu pai dizia “não te interessa”. Ele sempre dizia assim: “Especula, especula”. No final de 1966, ele fechou tudo, decidiu comprar uma fazenda perto de Atlantida e montou um tambo de leite, que nunca deu certo. Daí começou a trabalhar, passamos por uma fase de tranquilidade. Em 1968, fui para a Inglaterra fazer a cirurgia. Nos últimos anos, os negócios estavam dando certo, ele estava comprando terras.
Quanto veio de dinheiro de Cuba?
Dizem que foi US$ 1 milhão.
Ele falava abertamente sobre isso?
Falava, mas eu tinha de arrancar. Lembro de um baú de madeira enorme com moedas de ouro. Ele se trancava nos quartos e, certa vez, eu entrei e vi um monte de moedas. E não era pouco. Outra vez, ainda em Atlantida, cheguei em uma lanchonete e havia três brasileiros bêbados falando que eram do esquema do Brizola em Caparaó. Muito tempo depois, perguntei se havia esse plano de armar uma guerrilha na Serra do Caparaó(divisa entre Minas e Espírito Santo). Ele disse que havia o plano de fazer algo como a revolução cubana (que começou por Sierra Maestra).
Mas logo viu que o povo não iria aderir, não tinha a menor chance de dar certo. As próprias pessoas que chegavam para serem treinadas vinham de terno e sapato. Para fazer uma operação de campo como essa, tinha de ter experiência em montanhas. Tanto que só durou três, quatro dias.
E o que foi feito com todo esse armamento?
Ele sempre teve paixão por armas. Tanto que, quando morreu, encontramos em um armário do apartamento de Copacabana vários rifles. Deu trabalho se livrar dessas armas. Como você vai justificar? Chamamos um coronel da PM que era de nossa confiança e pedimos para dar um jeito. Os últimos exemplares estão lá num contêiner na fazenda. Tem uns três ou quatro. Da grande parte do armamento ele deve ter se livrado, mas sempre guardou alguma coisa.
E o que foi feito do dinheiro?
É complicado dizer exatamente, porque eu não sei. Minha mãe tinha terras em São Borja, eles tinham uma fazenda em Mostardas, conhecida como Pangaré, que depois ele deu metade para um projeto de reforma agrária. Minha mãe, com razão, xingou ele a vida inteira por ter feito isso. Logo que veio o golpe de 1964, essas terras foram compradas a preço de nada. No Uruguai, tinham uma fazenda de 2 mil hectares, um apartamento. Eles viviam apertados, o orçamento era limitado. Já com Jango era mais folgado, até porque ele sabia fazer negócios. Meu pai sabia mais era fazer política.
De que forma seu pai se referia a Jango?
Depois do rompimento, Jango era o satã. Tanto que, em uma determinada época, eu tinha uns 16 anos, quis me aproximar de meu tio para ver se era isso mesmo. Foi uma das melhores coisas. O pai sempre chamava os adversários daquilo que eles não eram, tudo tinha de ser do jeito dele. Já o Jango era conciliador, queria resolver as coisas numa boa. Ficava difícil os dois conviverem pacificamente. Tanto que tomaram rumos diferentes. A mais afetada por essa briga deles foi a minha mãe. Ela era muito amiga do irmão, cresceram juntos. No início do exílio, estava tudo bem, as famílias sempre juntas, mas depois, com o rompimento, ela ficou deprimida, começou a beber.
Brizola retornou ao Brasil com a Lei da Anistia, em 1979, dando início a uma terceira fase da vida. Como foi a volta?
Tão logo se instalou no Rio, o pai começou a montar o partido, a se movimentar politicamente. E minha mãe voltou a entrar em depressão. Dizia que não era isso que esperava, que queria voltar para o Uruguai. No Rio, ela não conseguiu acompanhá-lo, e daí não se recuperou mais, nunca mais voltou a ser a mesma. Por pouco eles não se separaram. Ela não conseguia seguir o tranco dele. Ainda por cima ele era muito chegado a mulher, mulherengo.
A Neusa sabia dos relacionamentos dele?
Sabia. Ele negava sempre, mas estava na cara. Ficava difícil ela controlar a situação. Eles retornaram ao país no final de 1979. Entre 1980 e 1981, o pai se dedicou a montar o PDT. Na eleição de 1982 (a primeira eleição direta para governador após quase duas décadas de ditadura), o pai só passou a ser o favorito da disputa ao governo do Rio nos últimos dois meses de campanha, mas a mãe já estava em Nova York em tratamento. A situação estava ruim. Ela retornou ao Brasil três meses depois de ele ter tomado posse. Tentou assumir algumas funções assistenciais.
Que tipo de tratamento ela fez?
Psiquiátrico, para tentar superar toda essa mudança. No Brasil, não tinha a menor condição. Quando ela voltou, teve um período de recuperação, mas, em seguida, ela parou de acompanhá-lo. Eu já estava trabalhando numa construtora como arquiteto recém-formado. Era residente de uma obra. Meu pai saltou nas pesquisas, e a construtora viu que eu tinha que ter outras funções.
Sem falar que já juntava gente para me pedir emprego. Não tinha mais condições de eu continuar naquele escritório. Pedi para sair, para grande decepção deles. Fui ajudar meu pai, mas ele também não deixava eu chegar muito perto dele. Até que surgiu a possibilidade de eu contribuir no projeto de construção do sambódromo.
Por que ele não deixava você chegar perto?
Ele achava que não era de nossa conta. Quando a gente perguntava alguma coisa, a resposta era a mesma: “Isso não é de sua conta”. Como se quisesse nos proteger. Dizia “você tem de aprender muito para chegar até aqui, olha quem eu sou e olha quem tu és”. No fundo, era uma pessoa muito carinhosa, como todo bom político. Nos tratava como aliados políticos ocasionais. E não éramos, né?
O sambódromo foi a primeira missão que ele lhe deu?
De trabalho, foi. Ele disse que eu poderia ser o fiscal da obra. Ali cresci profissionalmente, já estava com 27 anos. No fim, já estava dirigindo a obra toda. Mas, antes disso, ainda no exílio, fui várias vezes para Portugal (onde Brizola morou por um tempo), fazia ligações para ele, já gerenciava os negócios no Uruguai. Ele sempre manteve o José Vicente distante disso tudo. Tanto que montou um negócio totalmente separado para ele no Uruguai.
Por que Brizola confiava mais em você?
Ele via que eu não gastava dinheiro, que me preocupava com o equilíbrio econômico dos negócios. Mas, na infância, não foi assim. O pai e a mãe davam muito mais coisas para o Zé Vicente porque ele era o primogênito. Na família da minha mãe sempre teve o culto ao primogênito. Então, o maior sempre tinha os privilégios e era o dono da verdade. E o meu irmão sempre teve um caráter violento, eu brigava muito com ele. E isso foi me distanciando um pouco deles. Eu ia muito na casa da minha madrinha (Mila Cauduro). Ela me ensinava etiqueta, coisas que, para meu pai, eram mundanas demais. Comecei a ver o mundo de uma forma diferente. Ela me ensinou que o dinheiro não vinha fácil e era preciso saber gastar.
O segundo mandato de Brizola como governador do Rio (1991 - 1994) foi muito contestado. Foi ali que ele soube que o sonho de chegar à Presidência estava sepultado (Brizola concorreu para presidente em 1989 e 1994)?
Não. O sonho foi sepultado em 1989. Foi uma eleição muito estranha. Acompanhei bem porque ali já tinha voz ativa, sempre dentro dos limites que ele permitia. Às vezes, tinha uma atitude debochada, tipo “você não sabe de nada, tem muito que aprender”. E adorava fazer isso na frente dos outros, para a minha desgraça (risos). Mas, voltando a 1989, ele mesmo dizia que tinha uma coisa que prendia ele para trás.
O general Golbery (do Couto e Silva, chefe da Casa Civil dos governos militares de Geisel e Figueiredo) foi muito inteligente. Até hoje a política brasileira vive de suas decisões e ensinamentos. Ele criou esse modelo partidário que está aí, dividindo o sindicalismo, deixando ascender o Lula, uma pessoa que não era comprometida com o passado. Lula era muito mais fácil de ser digerido em 1989.
Os militares botaram uma carga de negativismo em cima do legado de Getúlio, Jango e Brizola. Principalmente no modelo sindical criado por Getúlio. Eles queriam sepultar a história. Meu pai tentou se aproximar de Lula diversas vezes, mas ele sempre o hostilizava. Então a esquerda ficou dividida. Ainda colocaram as candidaturas de Ulysses Guimarães e Mário Covas para tirar votos da esquerda. Já a direita se uniu em torno de Fernando Collor. Ali que meu pai se convenceu de que era difícil se tornar presidente.
Como era a relação de Brizola com Lula?
O pai tentou muito se aproximar dele. O ponto mais próximo foi na eleição de 1998 (quando Brizola concorreu como vice de Lula). Depois, quando Lula ganhou, em 2002, José Dirceu (braço direito de Lula, que viria a ser ministro) não deixou que meu pai fosse ministro de nada. Disse que era para colocar Brizola como embaixador no Uruguai. Primeiro cogitaram que ele fosse ministro da Agricultura, depois, da Educação. Acabou não ficando com nada.
O convite para ser embaixador foi feito?
Sim, foi feito. Mas o pai me dizia: “Ainda vou ter de ficar apertando a mão desse cara (José Dirceu) na pista do aeroporto de Montevidéu como se fosse empregado dele”. As relações entre Brizola e Lula terminaram muito mal.
Quais foram os maiores acertos do seu pai?
Ele manteve as finanças nos eixos, sempre com arrecadação eficiente. Foi assim no governo do Rio Grande do Sul. Nos governos dele, sempre havia dinheiro para investir em projetos sociais. Sou suspeito para falar, mas não teve nenhum outro governo brilhante no Rio Grande do Sul depois do dele. Já nos dois governos do Rio foi mais difícil, tinha oposição do governo federal. Mesmo assim, fez um plano de investimentos que poucos fizeram até hoje. A eficiência administrativa era muito boa.
E os maiores erros políticos?
A minha visão foi que ele subestimou o poder dos Estados Unidos antes do golpe militar. Ele achava que o poder dos americanos era só nas armas. Não era. O poder estava também em Wall Street e em Hollywood. O primeiro comanda a engrenagem financeira, o outro comanda como o mundo pensa e se comporta. Pouco antes de morrer, conversando com ele na fazenda, perguntei se ele não tinha se dado conta disso. Mas ele não aceitava. Nunca compreendeu que era muito difícil fazer as reformas de base da maneira que queria. Estava claro que quem mandava eram os Estados Unidos. Daí vem um gaúcho querendo implantar reformas. Outro erro estratégico ocorreu quando ele voltou ao Brasil (em 1979, depois de um exílio de 15 anos). Poderia ter chegado à Presidência e feito parte das reformas que tanto queria se tivesse sido um pouco mais flexível, se tivesse se aberto mais para a direita.
Que avaliação você faz do PDT?
A avaliação é muito ruim. Tudo se desvirtuou muito. De um lado, tem meus sobrinhos, com suas aspirações legítimas. São jovens, têm o gene da política. Por outro, todo esse grupo que controla o PDT. Toda essa briga é devastadora. Meu medo é que, nas próximas eleições, a resposta venha. O partido não tem mensagem, simplesmente quer se juntar com outros para ter cargos. Nunca foi o que o pai quis fazer. Meu pai sempre preferiu ficar no ostracismo a fazer composições. Me pergunto por que o Carlos Lupi (presidente do partido desde que Brizola morreu) não sai candidato nas eleições se ele está tão bem, tão firme, tem tantos diretórios na mão? Meu pai sempre dizia que o partido tem de ser controlado por quem tem votos.
Os seus sobrinhos carregam o DNA do avô?
Cada um tem um pouquinho. Todos os três são inteligentes. A mãe e a avó deles (Nereida e Dóris Daudt) fizeram muito o caráter deles. Tudo que talvez o José Vicente não tenha dado, elas conseguiram. Também tiveram a chance de conviver com meu pai. Eles têm tudo para serem grandes políticos. Eu não tive esse DNA.
Por que você não teve esse DNA?
Talvez porque me identificava mais com o estilo de meu tio (João Goulart) do que com o de meu pai. Minha natureza é mais calma, conciliadora. E isso não era aceito. Para meu pai, fazer política era fazer do jeito que ele queria.
Você leu o livro sobre a sua irmã, Neuzinha?
Não li todo. Mas a Laila (filha de Neuzinha) quis fazer o livro a partir de depoimentos gravados da mãe. Não conheço o autor do livro, mas minha irmã sempre foi de uma imaginação fértil demais. Gostava de aumentar as histórias. Tem vários episódios em que não dá para acreditar. Que ela tinha problemas com drogas toda essa geração teve, uns mais, outros menos. É um relato da vida dela, da imaginação dela.
Você sente saudade do seu pai?
Sinto. Sinto falta, mas, em outras horas, não sinto, por tudo que passei. Vou contar uma coisa importante. Alguns anos antes de ele morrer, começou a pedir para eu retornar dos Estados Unidos (João Otávio morava em San Diego, onde tinha uma empresa de construção e reforma de casas). Ele dizia: “João, está na hora de você voltar para casa, de ficar por aqui”. Também não sabia se aquele era o meu projeto de vida ficar construindo casas. Quando voltei, em 2002, passei a conviver mais com ele. Viajávamos todos os meses para o Uruguai. Virei um companheiro de viagem. Tudo acontece por uma razão. Aproveitei esses momentos juntos para falar sobre tudo, como se estivesse saneando minha relação com ele. Falei sobre todos os assuntos, bons e ruins.
Que tipo de conversa?
Eu perguntava coisas como “você nunca pensou que seus filhos cresceram num palácio e que jamais poderiam estudar numa escola rural ou ser engraxates na Galeria Chaves, que a nossa educação era outra, que não adiantava forçar para parecermos mais do povo?”. Ou “por que vocês nos criaram com tão pouco amor-próprio?” Ele respondia: “Porque eu não sabia fazer melhor, achava que era o certo”. Aos poucos, fui entendendo o outro lado. Consegui conversar de uma forma que jamais conseguira.
Por que ele rompeu com o seu irmão mais velho, o José Vicente?
No auge da briga dos dois (entre 2000 e 2003), o pai me mostrou um álbum de fotografias em que aparecia uma foto dos três filhos pequenos sentados em um murinho da casa de Capão da Canoa. E ele me perguntou como se não soubesse a resposta: “Nós criamos vocês a pão-de-ló, como pode o seu irmão ter saído assim?” Ele me perguntava querendo saber onde foi que errou, sem admitir que sabia onde tinha errado. Eu disse que ele tinha nos criado sem muito amor-próprio em função da sua profissão, sempre querendo que as coisas estivessem no lugar que ele queria. Nós éramos uns brinquedinhos. Falei para ele da atitude de querer ralhar com a gente na frente dos outros para dar exemplo. Essas conversas foram saneando nossa relação.
Alguma vez você rompeu com seu pai?
Nunca, mas ficaram muitos danos. E isso fazia com que eu tivesse bloqueios. O pai e a mãe nos dividiam, quando crianças, para poder nos controlar. Isso deixou os irmãos muito desunidos.
Quando você foi se dar conta disso?
Só depois de adulto. Tanto que, uma vez, eu disse a ele que não adiantava mais falar mal do Zé Vicente para mim pois eu não poderia resolver os problemas dele. O pai tinha dificuldade de fazer a gente conhecer o mundo como ele realmente era. A relação era de muita nitroglicerina, piorada com o exílio. Ele tinha só 42 anos quando foi obrigado a deixar o país. Eu tinha 11, o Zé, 13, e a Neuzinha, nove. Do dia para a noite, a sorte e a fortuna da família mudaram radicalmente.
Brizola, em algum momento, no final da vida, admitiu os erros familiares que cometeu?
Uns 15 dias antes de morrer, ele chamou minha prima, a Denize (filha de João Goulart). Queria pedir desculpas para ela, em nome de meu tio, da minha mãe e dele, por tudo que eles fizeram de errado na relação com os filhos e sobrinhos. Era como se estivesse passando a vida a limpo. E, em seguida, ele se foi. Só soube dessa conversa depois que ele morreu.
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