sábado, 25 de março de 2017

"Ultraje" - por Rosiska Darcy de Oliveira


O Globo

Desfaçatez dos políticos à cata de impunidade contém outro imenso risco: deixar intactos os múltiplos esquemas de corrupção



A resposta da ministra Cármen Lúcia à pergunta do jornal O GLOBO — “E agora, Brasil?” — exprime de forma luminosa a gravidade do momento que estamos vivendo. “E agora, brasileiros? O que vocês, incluindo todos nós, vão fazer para mudar? Este é o momento de despertar, como em outras oportunidades que tivemos”.

A apresentação da lista de Janot é um destes momentos raros na vida das nações em que sentimos com um misto de exaltação e inquietação que a história se acelera e que estamos jogando o nosso destino. À frente, uma encruzilhada: um salto em direção ao futuro ou a regressão ao charco em que o país agonizava sem que soubéssemos. Chegou a hora da verdade.

A denúncia do procurador-geral revela a metástase da corrupção que devastou o Brasil. O sistema político implodiu, fez-se um campo de ruínas. Exacerba-se o desespero dos políticos que, desmascarados, não pensam em nada senão em salvar a própria pele, custe o que custar. Da tentativa de aprovação a toque de caixa de uma autoanistia à adoção do voto em lista fechada para assegurar sua reeleição e foro especial, as tramoias urdidas no Congresso provocam uma sensação de náusea.

Vivemos tempos de “italianos” e “amigos”, todos amigos dos amigos, tempos de mafiosos, bandidos com codinomes, batizados por empresas criminosas. O que explica o sorriso meio irônico, meio Mona Lisa, do insondável Marcelo Odebrecht.

O Brasil tem um vasto capital de homens e mulheres dignos. A respeito da autoanistia, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto foi cristalino: “Não existe a figura da autoanistia. O Estado não pode perdoar a si mesmo, é inconcebível, um disparate, um contrassenso, uma teratologia. É a negação do estado de direito”.

A introdução do voto em lista fechada, controlada pelos caciques dos partidos e com lugar reservado para os detentores de mandato, expropria o eleitor do seu direito de escolha e os cidadãos do direito de se candidatar. Garante a esta gente seu foro privilegiado ainda que à custa de mumificar a representação política, impedindo toda e qualquer esperança de renovação. É este objetivo escuso que está por trás da manobra, e não qualquer preocupação com a reforma do sistema eleitoral.

O desfecho do processo de reconstrução nacional, que é o sentido profundo da Lava-Jato, está à vista. A afirmação de que ninguém está acima da lei vence a descrença e muda o Brasil. Daí a violência da reação destes que sentem seu poder e seus privilégios ameaçados. Já não têm mais nada a perder, nem honra, nem dignidade. Em suas próprias palavras, sua única preocupação é “estancar a sangria”. Comportam-se como feras acuadas, dispostas a tudo.

A desfaçatez dos políticos à cata de impunidade contém outro imenso risco, o de deixar intactos os múltiplos esquemas de corrupção ainda não alcançados pela Lava-Jato. É provável que o que já veio à tona seja apenas a ponta de um iceberg cuja parte ainda submersa se espraia por todos os níveis da administração pública, estatais, fundos de pensão, agências reguladoras, enfim, por todo e qualquer espaço em que haja recursos públicos a serem saqueados.

Há os que argumentam que a investigação e a punição dos culpados abrem uma crise institucional que desestabiliza a economia. Nonadas. O que destroça a economia é o megassistema de corrupção. O que gera instabilidade é a impunidade. A volta por cima que estamos dando só valoriza nossa imagem e lugar no mundo.

Há que dar um basta às tentativas de impunidade sob pena de perpetuação do sistema de corrupção. Como alertou um dos procuradores da Lava-Jato, uma noite no Congresso pode destruir tudo o que se vem construindo nos últimos anos. Autoanistia e ameaças a juízes e procuradores representam um último ultraje à população que exige decência. São aberrações que não podem passar sob pena de desmoralização da democracia.

Atenção às palavras da ministra Cármen Lúcia. “Acho que talvez estejamos quase na ruptura de um modelo político-institucional em que passavam-se coisas que não vinham a público e, se viessem, dava-se um jeitinho. Agora, não. Agora o jeito é aplicar a lei, e será aplicada! Há juízes no Brasil para aplicar a lei, e ponto. Podem acreditar nisso!”

Acreditamos. Agora, mais do que acreditar, é preciso agir. Os que queremos a redenção do Brasil não podemos ser espectadores, temos que ser protagonistas. Cada gesto conta, cada palavra dita ou escrita, cada opinião compartilhada em conversas, redes e blogs, cada protesto público. Se assim for, a impunidade não passará.

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