quarta-feira, 22 de agosto de 2012

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA Um sentido atual em Manuel Bandeira



CARLOS VIEIRA
O ano é 1948, dia 26 de janeiro. Manuel Bandeira escreve uma carta a João Cabral de Melo Neto, o poeta da “Pedra do Sono”, coletânea de poemas escritos entre 1939 e 1941. O Rio de Janeiro estava “tremendamente” quente e o poeta maior veraneava na cidade de Petrópolis. A carta faz parte de uma coletânea de 42 documentos epistolares trocados pelos dois poetas pernambucanos. João Cabral em Barcelona, editando livros em sua tipografia, inclusive os de Bandeira; Manuel em Petrópolis, cidade que sempre o albergava, alívio climático ao poeta tísico. 
Nessa missiva, documento que pertence ao acervo de Manuel Bandeira do Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Rui Barbosa, Manuel noticia a nova edição de suas Poesias Completas, mas escreve a João, que não é mais completa, pois já fizera mais três poeminhas: “O Bicho”; “O Rio” e “Visita Noturna”. 
Na resposta de João Cabral em 17 de fevereiro de 1948, ele escreve: “achei-os excelentes, principalmente ‘O Bicho’. Não sei quantos poetas no mundo são capazes de tirar poesia de um ‘fato’, como você faz. Fato que você comunica sem qualquer jogo formal, sem qualquer palavra especial, antes, pelo contrário: como que querendo anular qualquer efeito autônomo dos meios de expressão... Mas diante de poemas como ‘O Bicho’, fico satisfeito por verificar que nenhum excesso intelectualista me é capaz de tirar a sensibilidade para poemas dessa família.” 
O poema de Bandeira, “O Bicho” me sensibilizou pela sua atualidade. Estava eu voando em direção à cidade de Aracaju, numa quinta à tarde. Pela janela do avião, apreciava um céu completamente azul, um céu de agosto, pelo menos enquanto deslizava em território do planalto central do nosso Brasil. Comecei a ler, não pude mais me ater à paisagem celestial. Algo me agoniava e associava com a realidade social desse país, cognominado de país emergente, aspirante a primeiro mundo (?). Logo fui sentindo que os versos de Bandeira faziam doer minhas veias. Vamos senti-lo, caro leitor:
“Vi ontem um bicho 
Na imundície do pátio 
Catando comida entre detritos. 

Quando achava alguma coisa, 
Não examinava nem cheirava; 
Engolia com voracidade. 

O bicho não era um cão, 
Não era um gato, 
Não era um rato. 
O bicho, meu Deus, era um homem”
“Não sei quantos poetas no mundo são capazes de tirar poesia de um ‘fato’”, escrevera João Cabral. Que fato? A fome, a miséria, a consequência evidente da injustiça social? Um homem voraz, voracidade que mais fala de uma angústia, de um desespero, de quem na marginalidade, sente a iminência da morte. Não importa se sua alimentação nos “lixos” das cidades seja de detritos, de restos, de alimentos expurgados da mesa da burguesia. Nem importa o risco da contaminação, do perigo das salmoneloses, ou do vômito posterior a uma refeição deteriorada. Importa sim, que nosso povo ainda está faminto. 
O fato que o poeta apreendia nos idos de 1948 aparece de uma maneira estúpida e alarmante em 2012, filmado, denunciado, encenado, numa não simples novela, Avenida Brasil. Filhos dos “lixos”, os homens e crianças que Bandeira cantou em versos! Filhos execrados, marginalizados, que não somente se alimentam de restos de detritos, mas que criam a cultura do ódio, da inveja, do ressentimento e da vingança. As “Carminhas e os “Jorginhos” da vida não habitam a trama de uma novela de televisão, existem juntos aos cães, gatos e ratos nos lixos da periferia das grandes e pequenas cidades do Brasil. Que Brasil! Bandeira transforma o “fato” em poesia. A poesia crua e nua da realidade social , produto da consequência de outra “voracidade”, a voracidade das classes dominantes, da quadrilhas no governo e fora dele, que se alimentam dos recursos destinados acabar com a endemia da fome. O cão, o rato e o gato são nossos grupos humanos que detêm a riqueza e incrementam a diferença social. 
Ah! Bandeira, Bandeira, a tuberculose que corroia seus lindos e poéticos pulmões, hoje se transformou na doença do “bicho-homem”, pós-modernos, capitalistas selvagens, social-democratas, que vociferam o dinheiro dos nossos impostos e criam “lixos” sociais, ecológicos e perversos. Está na novela, Avenida Brasil, a perversidade psicopática da classe emergente e da classe dominante.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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