quarta-feira, 22 de maio de 2013

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA - Ternura



CARLOS VIEIRA
Afetuosidade, blandícia, brandura, delicadeza, doçura, mimosura. Ainda refere-se a terno, afetuoso, doce, meigo e meiguiceiro. Os românticos sabiam exatamente cantar em prosa e verso esse sentimento, talvez tão raro nesse mundo atual. Será que há acolhimento para essa palavra, para esse estado de alma nos dias de hoje? 
Somos metralhados por sequestros, assaltos, crimes hediondos, sexuais, incestuosos, uma justiça injusta e governos que só visam sua permanência no poder, longe da ternura para com seus “filhos eleitores”. Estou sendo romântico ou pessimista? Estou desacreditado do Amor? Não, estou tentando compor uma canção atual – talvez o medo de ser terno, o medo de amar. Talvez com o fracasso da unidade familiar, crianças criadas com ausência de afetuosidade e da ética (incapacidade da função de interdição) na sociedade atual, não caiba espaço para se ouvir a delicadeza do piano de Alexander N. Scriabin, compositor e pianista russo que compôs uma pequena obra – “Deux poêmes, Opus32 para piano. Sua melodia e seus acordes levam a alma para um estado de candura e doçura. O piano, em ritmo de valsa, escorrega notas e faz com que os dedos do pianista se elevem ao sublime, ao belo, à esperança. É uma experiência inefável, encantadora, que as palavras sofrem nos dedos do poeta para serem expressas. Talvez aquilo que Clarice Lispector em seu monólogo – “Água Viva”- chamou de algo “antes do pensamento”. 
Ternura e encantamento são assim. É a beleza de sentimentos e emoções que Dostoievski descreve, ainda jovem escritor, nas primeiras páginas do romance “Noites Brancas” (1848) onde expressa um canto de amor de uma mentalidade de um sonhador. 
Ternura não existe num adulto jovem, cognominado de mauricinho, que certa ocasião me disse: “Eu estava chapado, doidão, na night. Vi a gata, enchi a cara dela de vodka, fomos curtir um rolé e uma noitada de prazer, e depois a deixei na beira do lago. Que barato! Essas patricinhas precisam é de macho, de sexo e nada mais!” Será esse fato uma metáfora das “relações atuais e futuras”? 
Freud, em 1912 escreveu um dos seus textos, claro, para mim, mais profundo e intrigante sobre o amor e a dificuldade de unir ternura com sensualidade. O texto é: “Sobre a mais comum depreciação na vida amorosa” e faz parte das suas “Contribuições à Psicologia do Amor II”. 
Escutemos alguns fragmentos do texto: “A corrente terna é a mais antiga das duas (a outra é a sensual). Ela vem dos primeiros anos da infância, formou-se com base nos interesses do instinto de autoconservação e se dirige às pessoas da família e aos que cuidam da criança. Desde o início recebeu contribuições dos instintos sexuais, componentes de interesse erótico... Ela corresponde à escolha de objeto infantil primária.” Primeiro a ternura e logo a sensualidade. Continua Freud: “Tais fixações ternas nas crianças continuam através da infância e sempre incorporam o erotismo, que é assim desviado de suas metas sexuais.”... “Esses novos objetos ainda serão escolhidos segundo o modelo (a imago) daqueles infantis, mas com o tempo atrairão para si a ternura que ligava aos primeiros. O homem deixará pai e mãe – conforme o desejo bíblico – e se apegará à mulher; ternura e sensualidade ficarão unidas.” Digo de outro modo: a amorosidade convive sem conflito com a sexualidade. 
Confuso, querido leitor? Não tanto. Estou querendo mostrar como alguém pode juntar afetividade com sexualidade por uma mulher ou por um homem. Mas nem sempre acontece assim. É frequente encontrar relações onde ternura e sexualidade estão desvinculadas. É sabido de homens que apresentam impotência e ausência de gozo, assim como mulheres que carregam a frigidez; uma incapacidade de unir o sexo e a delicadeza afetiva no objeto de amor. Volto a Freud: “Produziu-se, portanto, uma limitação na escolha do objeto. A corrente sensual que permaneceu ativa busca apenas objetos que não lembrem as pessoas incestuosas proibidas (pai e mãe); quando uma pessoa faz uma impressão que pode conduzir a uma elevada apreciação psíquica, isto não resulta em excitação da sensualidade, mas em ternura ineficaz eroticamente.” 
A literatura está repleta em seu período parnasiano e romântico na questão da Santa e da Prostituta. Os romances familiares como chamava Freud, estão repletos de narrativas de casais onde a ternura fica em casa com a esposa, e a sensualidade e sexualidade recai na amante ou nas relações prostituídas. Repito: a ternura torna-se ineficaz eroticamente. 
Essa dissociação entre amor e prazer físico, agora num âmbito social, mostra na pós-modernidade quanto o homem perdeu a ternura e orientou a procura da felicidade (?) nos prazeres materiais, no consumo de bens, no poder pelo poder, e perdeu a ternura. Juntar a afetuosidade com prazer físico exige uma renúncia profunda da avidez, da voracidade, do desejo de ter tudo. A fantasia, nos homens (terem todas as mulheres do mundo); e nas mulheres (terem todos os homens do mundo). Um universo sem escolha e sem renúncia. 
O antigo ditado chinês que diz: “Quem não reflete, repete” aponta para a necessidade de pensar que o Mito de Édipo e o de Electra necessitam serem repensados e refletidos! Freud é enfático: “O homem deixará pai e mãe... e se apegará à mulher: ternura e sensualidade ficarão unidas. O grau máximo de paixão sensual acarretará o máximo de valoração psíquica”. 
Recomendo para expandir as ideias que o leitor leia em Carlos Drummond de Andrade, seu belo poema – “O Caso do Vestido”, pois é muito longo para transcrever aqui. No entanto deixo o “canto poético” de Manuel Bandeira, em seu poema – TERNURA:
“Enquanto nessa atroz demora,/ Que me tortura, que me abrasa,/ Espero a cobiçada hora/ Em que irei ver-te à tua casa: 
Por enganar o meu desejo/ De inteira e descuidada posse/ Ai de nós! Que não antevejo/ Uma vez que ao menos fosse; 
Sentindo em minha carne langue/ Toda a volúpia do teu sonho/ Toda a ternura do teu sangue, / Minh’alma nestes versos ponho; 
Por que os escondas de teu seio/ No doce e pequenino vale/ - Por que os envolva em teu enleio,/ Por que teu hálito os embale; 
E o meu desejo, que assim foge/ Ao pé de ti e te acarinha,/ Posso sentir que és minha hoje, / e és para todo o sempre minha...” 
Poema do livro – “A Cinza das Horas.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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