sexta-feira, 19 de abril de 2013

PSICANÁLISE DE VIDA COTIDIANA O que a Música contribui para minha prática analítica


CARLOS VIEIRA
Nos anos 80 do século passado, um impulso irresistível me fez comprar um saxofone e criar um problema saudável e doloroso – procurar um professor que tivesse disponibilidade para ensinar e tolerar alguém com quarenta anos ter a ousadia de aprender música. Comecei a estudar leitura musical e soprar as notas de um instrumento que, de saída, me exigiu treinar respiração abdominal e desenvolver a tolerância de fazer as notas, sentir, limpar as impurezas da sonoridade e procurar a minha própria. Concomitantemente estava em processo de análise didática (análise para a formação em psicanálise) com a Profª. Virgínia Leone Bicudo. Aos poucos fui experimentando uma coisa inédita: a disciplina da formação musical não é tão diferente da formação de um analista. Esta iniciação se deu durante quatro anos, duas horas diárias, experiência que me faz grato ao Prof. Manoel de Carvalho, segundo Clarinetista da Orquestra Sinfônica de Brasília, inclusive porque ouvindo-o tocar seu clarinete, me fez se apaixonar pelo som sombrio, aveludado, elegante e operístico, abandonando o saxofone. Escalas, arpegios, fraseados e exercícios melódicos me colocaram questões subjetivas e emocionais: tocar, desenvolver treino técnico, uma questão de persistência, repetição, repetição, erros, acertos e tolerância a esperar que dominar a parte técnica, instrumentistica pudesse dar condições e introjetar e abrir um novo desafio – desenvolver a capacidade artística. 
Alguns músicos são técnicos, instrumentistas e não artistas; alguns analistas são repetidores de clichês teóricos e técnicos, e não psicanalistas. “Penetra surdamente no reino das palavras/ Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los só mudos, em estado de dicionário./ Convive com teus poemas, antes de escrevê-los./ Tem paciência se obscuros. Calma se te provocam./ Espera que cada um se realize e consume/ com seu poder de palavra/ e seu poder de silêncio.” Fragmentos de Drummond seu poema – A Procura da Poesia – que se aplica a qualquer arte, como metáfora. Pratiquei após algum tempo a prática de conjunto, sendo clarinetista da Banda Filarmônica da Escola de Música de Brasília, além de participar de alguns duos e trios com colegas em aprendizagem supervisionada. 
Quatro anos depois conheci uma pessoa que realmente expandiu minha vida artística e tive com ele, Prof. Luiz Gonzaga Carneiro, primeiro clarinetista da Orquestra Sinfônica de Brasília, a possibilidade de estudar no Departamento de Música da UnB. Gonzaga era um sábio, e além disso, uma pessoa dotada de uma generosidade ímpar no ensino da Música. Clarinetista, Saxofonista, Arranjador, Professor de Harmonia, Música de Câmera. Um homem que intuía e contribuía não só para o ensino da virtuosidade mas para a expansão das nossas mentes, e para a capacidade de desenvolver tolerância, sensibilidade estética , identificação de estados emocionais e capacidade criativa. Uma tarde, no horário da minha aula comecei a tocar, e minutos após percebi que minha sonoridade e minha tentativa de apreensão estética da partitura estavam bloqueadas. 
Após algum tempo a gente ouve a nossa própria sonoridade e quando ela não sai do nosso interior temos imediatamente a evidência de que naquele momento o som não nos agrada nem se identifica com o da própria pessoa. É interessante, pois nessas situações é comum os aprendizes e os músicos colocarem a “culpa projetiva” no instrumento, na palheta, na umidade do ar, na boquilha do clarinete, na marca do instrumento. “Doce ilusão”, dizia Gonzaga, “vamos fazer outra atividade nessa hora, guarde o instrumento pois hoje sinto que você não está bem, parece angustiado e quando se estar assim o instrumento reflete o estado de mente. O clarinete é um tubo que reflete seu som interno, sua subjetividade, e se aí dentro de você predomina uma turbulência e ansiedade, o som sai precário, sem pureza, sem alma, sem tonalidade afetiva. Tenha paciência, mas hoje vamos treinar solfejo e não tocar.” 
Foram mais de dez anos de convívio com essa pessoa que já nos deixou mas que mora no meu coração e na minha alma, tal qual um amigo e analista: alguém que proporcionou mudanças psíquicas e contribuiu para desenvolver minha apreensão estética e interpretação dos estados de alma veiculados pela arte musical. Além de contribuir para a disciplina do tocar, do criar e interpretar, essa experiência se somava àquela que vivia na minha análise e formação para ser analista 
Aprender uma arte, e aqui coloco a prática psicanalítica com uma atividade artística, a música me ensinou e ainda ensina também a tolerar a renúncia narcísica da minha arrogância, da minha pretensão de perfeccionismo e minha ilusão de desenvolver rapidamente questões que apontam para paciência, para saber esperar e principalmente acreditar que uma arte impõe uma disciplina rigorosa. No meio musical se diz diariamente aos alunos e principiantes: na música não se pode mentir, caso o faça alguém escuta; no trabalho analítico também notamos quando fazemos uma “pseudo analise” e o analisando também percebe, não adianta mentir. A conversa é sentida pela dupla como vazia, estéril e de tipo “psicanalês”. 
Hoje, mais do que nunca, estou convencido de que a capacidade estético-artística, na música, na literatura, na poesia e em todas as formas de expressão artística é imprescindível para alguém que dedica sua vida a intuir estados de alma, experiências afetivas, conscientes e inconscientes. 
Lembro Carlos Drummond em seu belo poema – Procura da Poesia: “...Penetra surdamente no reino das palavras/Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata... Tem paciência, se obscuros.Calma, se te provocam./ Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra/ e seu poder de silêncio... Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível, que lhe deres:/ Trouxestes a chave?” 
Usando a poética de Drummond como metáfora e analogia, acredito que é esse estado de “gravidez estética” que nós psicanalistas precisamos ter e desenvolver, caso queira apreender, observar, interagir e poder contribuir para que seu parceiro, o analisando, possa de beneficiar do conhecimento de sua própria mente assim como o analista. Em análise crescemos juntos, caso contrário foi um faz de conta.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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