domingo, 12 de agosto de 2012

CRÔNICA - “O vendedor de sapatos”


12/08/2012

Giulio Sanmartini
Comecei a viajar pelo interior do Brasil muito cedo, quando tudo era uma aventura. A Rio São Paulo tinha somente uma pista, assim como a Rio Petrópolis, e eram as principais rodovias da nação.
O asfalto era pouco, as ferrovias horríveis, muitas cidades só podiam ser alcançadas por navio, mesmo assim em condições sofríveis.
Um dos elementos mais importantes para os locais perdidos na imensidão do país era sem dúvida o caxeiro viajante.
Estes também eram chamados por Cometas, devido a passagem breve que faziam nos lugarejos, durante suas permenências em muitas cidades as famílias proibiam a saida das filhas mocinhas, eles representavam um perigo.
Existiam os viajantes que levavam as mercadorias para entrega imediata, viajavam acompanhados com uma tropa de burros, conheci um, seu Chafic era libanês e vendia artigos para armarinho.
Os outros extraiam os pedidos e depois a firma mandava entregar os produtos aos compradores. O da fábrica de cerâmica de minha família era o Soares, fazia o estado do Rio e parte de Minas. Levava um álbum fotográfico com os produtos, fazia suas vendas e passava na fábrica duas vezes por mês para entregar os pedidos e receber as comissões. Me contava histórias ótimas das coisas que via e vivia durante as viagens que fazia com seu Chevrolet 1941.
As histórias de ambos trouxeram-me uma simpatia toda especial pelos caixeiros viajantes.
Corria o ano de 1961 e tive que ir a Montes Claros (Minas Gerais). A primeira etapa foi feita de ônibus até Belo Horizonte. Fiquei uns dias para conhecer a capital e parti de trem para o meu destino, acabei ficando no vagão dos cometas. Antes do trem partir formaram-se logo grupos de jogos de cartas, dois até jogavam xadrez. Eu sentei-me ao lado de um deles que não jogava nada, e logo entabulamos conversa; tinha mais de 50 anos, era português, chamava-se Adamastor e representava uma fabrica de sapatos paulista.
Chegando a Montes Claros, vendo que tinha dificuldade em carregar duas grandes malas, eram o mostruário, me propus a ajudá-lo.
- Vais ficar aonde? – perguntou-me
- Não sei bem.
- Eu fico sempre no hotel Presidente, podemos dividir o mesmo quarto para ficar mais barato.
Assim o fizemos. Naquela noite quando Adamastor chegou, perguntou como fora meu dia, expliquei-lhe que havia feito ao que viera e logo partiria. Ele percebendo que meu dinheiro era curto, me fez uma proposta.
- Queres ficar mais dois dias me ajudando a fazer a praça? Eu pago o hotel, tuas refeições e, conforme for, ainda te darei algum.
Aceitei imediatamente, assim por dois dias, fui auxiliar de caixeiro viajante. Meu trabalho consistia em carregar as malas, ao chegar no cliente expor a mercadoria e depois lançar no talonário de
pedidos, as encomendas conforme ele ia me ditando.
Tudo feito, na manhã do quarto dia, Admastor saldou a conta do hotel, meu deu um dinheiro e fomos de táxi até a estação. Havíamos saído antes do meio dia para que não vencesse mais uma diária e o trem era exatamente às 13:32, assim tínhamos algumas horas de espera. Estávamos numa conversa vagabunda, quando alguém se aproxima, percebo que Adamastor contrariara-se, sempre cordial, mostrava-se seco. O recém chegado foi logo perguntando se ainda vendia sapatos, diante da afirmativa, disse que estaria indo a Belo Horizonte pois precisava fazer uma grande compra, mas se Adamastor se propusesse a atendê-lo ali mesmo na estação, lhe pouparia a longa viagem.
O português iluminou-se, pediu-me que fizesse a exposição do material  ali mesmo no banco da estação.
Munido do bloco de pedidos ia anotando o comprado e lançando na coluna o preço dado por Adamastor. Notei com surpresa que era mais ou menos a metade do que havia dado aos outros fregueses que tínhamos visitado. Não disse nada, o negócio foi concluído, o outro feliz por não ter que viajar voltou para a cidade. Minha curiosidade era enorme e já no trem não resisti:
- Adamastor, esse homem sozinho comprou mais do que vendemos em dois dias, mas porque você lhe fez aqueles preços?
- Este filho de uma boa mãe é o maior comerciante de calçados da região, ainda faz revenda para pequenos negócios do interior. Há uns 5 anos, quando vim aqui pela primeira vez fui logo procurá-lo, ele disse que me faria uma grande compra caso vendesse só para ele, ou seja não fizesse a praça. A coisa me pareceu interessante e concordei. De fato o pedido compensava e de mais a mais, os próximos podia  fazê-los pelo correio poupando essa longa viajem.
Chego em Belo Horizonte todo animado, mas encontro um telegrama cancelando o pedido, depois fiquei sabendo que outro vendedor lhe havia oferecido sapatos e um preço pouco menor. Tive que voltar correndo a Montes Claros para salvar alguma coisa vendendo aos outros comerciantes. Desde essa época nunca mais o vi, ele pensa que esqueci do que me fez.
- Mas porque esse preço? – continuei perguntando.
- Me de aqui o pedido.
Passei-lhe o papel, ele  o jogou pela janela do trem em movimento e, com o sorriso doce da vingança, acrescentou:
- Este cancelo eu!

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