quarta-feira, 13 de junho de 2012

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA A Mentira e a Verdade



CARLOS VIEIRA
“O pior de mentir é que cria falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é um truísmo: sei que estou dizendo uma coisa e que apenas não seu dizê-la de modo certo, aliás, o que me irrita é que tudo tem de ser de modo certo, imposição muito limitadora). O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos, por negação, de provar a realidade. Mas a pior mentira é a mentira criadora. (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a pensar, eu sabia muito bem o que eu sabia)”. Mentir e Pensar, de Clarice Lispector em seu livro Aprendendo a viver. Ed.Rocco, 2004.
A questão da mentira está estritamente liga à verdade. C. Cantu, escritor italiano, (1804-1895) em sua obra Attenzione! XXII, escreveu que: “o oposto da mentira não é a verdade.” Mentir, falsear, diz respeito a um mecanismo psíquico contra a dor da verdade. Desde pequeno a criança inventa, imagina e transforma os fatos reais, pois não tem ainda condições de suportar as coisas como elas são. Os pais são heróis, a vida é eterna, a condição humana é isenta de qualquer aspecto que mostre limitação, impotência, falibilidade e mortalidade. Essa ilusão, essa primeira mentira, sem dúvida é necessária para que o infante possa suportar sua condição precária como ser humano. À medida que cresce e se desenvolve, a pessoa por força da realidade, ou suportar a “desilusão necessária”, ou intensifica suas “mentiras”, e com isso corre o risco de viver uma vida de “mitômano” ou delirante, psicótico franco.
É óbvio que a verdade, tanto dos fatos reais quanto da própria realidade psíquica, é uma experiência muito dolorosa. Fala-se muito de idealização, viver um mundo de ilusões, de fantasias, enfim, construir um mundo pessoal no qual não se tenha que enfrentar as verdades dolorosas. A mente humana luta ou foge de tudo que seja desprazer, desconforto, angústia, desagrado, decepção, desapontamento e dor psíquica. Entretanto, a experiência da vida mostra sempre a existência de “pares de opostos”, inevitáveis, implícitos: amor-ódio, prazer-desprazer, vida-morte, ganho-perda etc. Mentir é um recurso para negar essas dualidades, em busca de viver a completude, o “mito do paraíso”.
Um exemplo perfeito da necessidade de mentir e suas consequências no “grupo humano” é dado por uma novela que adentra as residências da população: Avenida Brasil, escrita por João Emanuel Carneiro e colaboradores. Uma trama complexa que fala todo o tempo da Mentira. As dores psíquicas de dois personagens, Jorginho e Nina, em busca de suas origens, em busca da verdade. Quero me referir hoje a esse aspecto da vida de uma pessoa - a busca de sua origem. A vida humana é cheia de mistérios, alguns decifrados, outros nunca esclarecidos. Querer saber sua origem é um direito de uma pessoa, pois a origem está ligada a um processo que culmina com a noção de Identidade. As pesquisas psicanalíticas mostram como é importante para uma pessoa ter em sua infância, “objetos de identificação”, ou seja, referências nas quais se desenvolve a noção de Identidade. Quando os pais ou aqueles que têm função materna e paterna falham, criam para a criança uma confusão mental e uma impossibilidade de ter a própria identidade. Hoje se sabe que os “distúrbios pré-psicóticos e psicóticos” nascem dessas falhas. A vida começa na necessidade de ter – espelhos – na pessoa da mãe e do pai.
João Emanuel Carneiro oferece suas observações desses distúrbios psicopatológicos em sua obra Avenida Brasil. Crises depressivas, estados de estranhamento de si mesmo, confusão mental, reações violentas, agressivas, falta de confiabilidade, descrença, estados de alcoolismo reativo, sentimentos de ódio, ressentimento e vingança, todas essas experiências psíquicas são mostradas nos personagens dramatizados por Débora Falabella e Cauã Raymond.
A novela é atual é o retrato fiel da crise que atravessa a nossa família brasileira e os grupos humanos que deveriam representar modelos de identidade pessoal e social. Mentir, sonegar, trapacear, tirar proveito do engodo, corromper, matar, comprar as pessoas para obter poder e benefício próprios, todos esses comportamentos compõem a crise ética dos tempos atuais. 
Enfim, caro leitor, a arte para ser arte precisa ter uma ação social, a novela está cumprindo essa missão e denunciando à população aspectos patológicos da família brasileira. Oxalá sirva para que as pessoas tomem mais consciência dos direitos humanos e da necessidade de uma nova ordem, individual, social e ética. Clarice tem razão: “o pior de mentir é que cria falsa verdade”.

“Tiraram tudo: agora eu me sinto envolto/ numa sombra, rodopiando por uma linha indefinida/ ouvindo o barulho mais triste de um relógio que não deixaram/ Eu sou mesmo um solitário e é verdade/ a afirmação do menino que disse chorar./ Eu estou catando o mundo,/ eu vou ficar chupando uma bala do esquecimento/ para encontrar uma definição: Eu acho que a solidão é Deus".

Versos de Álvaro Alves de Faria em “O Sermão do Viaduto”.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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