Tudo é negociável?
Muito de nós já nos colocámos certamente, ou nos colocaram, a questão: Tudo é negociável? E, muito provavelmente, respondemos sem hesitação: não! E carregando no tom peremptório, dando sinal de uma convicção inabalável, da ausência de qualquer ponta de dúvida; De que é questão que nem merece análise, muito menos discussão. Provavelmente justificar-nos-íamos com afirmações do tipo: Há coisas que não se negoceiam; Há princípios e valores indiscutíveis, que são sempre válidos, universais… Poderíamos, até, refinar a defesa deste tipo de afirmações introduzindo-lhe nuances: Uns têm mais que outros, mas toda a gente tem alguma coisa que não está disposta a negociar.
Muito bem. E o que há a dizer do aforismo: “Todos os homens têm um preço”? Podendo- se, inclusive, sofisticar essa afirmação com argumentos do tipo: E as diferenças entre as pessoas residem apenas no “montante”, e não em questões de princípio, tão só. Ou seja, uns seríamos mais caros do que outros (claro que quase todos tenderemos a colocar-nos no grupo dos mais dispendiosos, dos muito mais caros do que a maioria!…). Mesmo assim, haverá sempre alguém disposto a afirmar que tudo isso é verdade apenas para quem não tem valores e princípios.
Pois, neste momento, eu desafio o leitor a encontrar um exemplo de algo que não seja negociável (pense, por alguns segundos, por favor)… Alguns pensarão de imediato em coisas como a vida humana, por exemplo. Mas sabemos que infelizmente neste mundo, ainda hoje, se comercializam e negoceiam pessoas pelos mais diversos motivos … trabalho forçado, prostituição, crianças para adopções ilegais,… Claro que o leitor poderá retorquir: Mas isso são pessoas sem princípios, criminosos! Pois é, mas, desgraçadamente, negoceiam-se… Se o leitor pensar bem, não encontrará nada que não possa eventualmente, e muitas vezes infelizmente, ser negociado.
Ou seja, a resposta à questão inicial – Tudo é negociável? – será algo do tipo: Em rigor, qualquer coisa é negociável desde que hajam duas pessoas, ou mais, dispostas a fazê-lo. Ora bolas!, diz o leitor, visto dessa forma arrevesada… Caro leitor, não é uma forma arrevesada de ver a questão. É apenas a diferença entre o bom senso e o senso comum. Tento apelar aqui ao primeiro, porque o segundo, como muitas vezes acontece, é subsidiário de rotinas de pensamento e acção que prevalecem, apenas, precisamente por serem automatismos do nosso subconsciente que assumimos como certos só por isso, porque se tornaram rotinas. Encaramo-los como certos, irrefutáveis, tão só porque são o habitual, porque deixámos de neles pensar. O problema é que de hábitos podem ter passado a vícios, e nem os pomos em causa. E, muitas vezes, vícios “politicamente correctos”.
De qualquer modo, não pretendo aqui apelar à negociação em transgressão dos princípios da cada um, evidentemente. Pelo contrário! O que pretendo é sublinhar que quando estamos a negociar podemos propor para negociação o que bem entendermos, desde que respeitemos os nossos princípios e desde que nos interesse fazê-lo. Quer dizer, desde que entendamos que isso nos pode trazer benefícios. Naturalmente, para quem quer e gosta de se reger por princípios, não são estes os únicos dois limites a uma negociação. Há também a lei e, na eventualidade de representarmos uma determinada empresa ou instituição, as normas dessa mesma organização no que diz respeito a negociações em geral e à negociação específica em curso.
Novamente, o leitor pode perguntar-se: E então?! Não percebo qual é a novidade disto no que diz respeito às negociações que tenhamos que realizar. Deixe-me o leitor trabalhar um exemplo que, penso, quase todos nós já experienciámos. Pense na compra de um automóvel. Imagine que vendedor e cliente estão já realmente interessados em fazer negócio. O carro tem um preço de trinta e cinco mil euros. O cliente pretende um desconto de dois por cento, ou seja, de setecentos euros. Qual será o acordo adequado?… Penso que muitos dos leitores poderão dar uma resposta imediata, sem pensar muito, do tipo: Partir ao meio! Um desconto de trezentos e cinquenta euros…
Pergunto: E por que razão será esse o acordo adequado? Porque se divide a diferença ao meio, cedendo ambos por igual? Porque assim seria mais justo. Sobretudo porque não seria justiça nenhuma se cedessem em partes desiguais. Ou seja, este tipo de resposta pressupõe que o que está em causa é uma questão de justiça e, para muitos, obviamente o que é justo é a divisão ao meio do desconto de dois por cento, o que significa realizar-se o negócio com um desconto de um por cento. Certo!, responderiam muitos dos leitores de modo imediato, se não estivessem a ler este texto…
Então, deixe-me, leitor, lançar-lhe um desafio. E se o cliente pretendesse, inicialmente, um desconto, não de dois, mas de quatro por cento. Utilizando o raciocínio a que atrás aludi, qual seria o acordo adequado?… Dois por cento, setecentos euros, certo? E se o cliente pretendesse seis por cento, isto para facilitar as contas?… O acordo “justo” ficaria ao
meio também, três por cento… um desconto de mil e cinquenta euros. Então, por absurdo, se o cliente pretendesse um desconto de cem por cento, se quisesse levar o carro por zero euros, o vendedor estaria a ser injusto se não lho vendesse por, pelo menos, cinquenta por cento de desconto, ou seja,… Dezassete mil e quinhentos euros! Bom negócio! Para o cliente. O vendedor, ou o patrão dele, teria que fechar portas em pouco tempo!

Nesta altura pode o leitor pensar: Nem tanto ao mar, nem tanto à terra; Isso seria injusto. Então onde seria justo parar? Quem decide o ponto justo? O cliente? Talvez para ele o ponto justo seja nos cinquenta por cento de desconto, ou talvez só nos vinte e cinco… Mas para o vendedor, se calhar, tudo o que fosse mais do que zero por cento de desconto seria injusto, ou mais de um, dois, cinco… Certamente, quase sempre, os conceitos de justiça de ambos ficariam bem distantes…
E porquê? Porque haverá sempre um conceito de justiça conveniente que sustente as nossas pretensões, e que seja tão defensável como um outro qualquer conceito de justiça que justifique as pretensões do outro. E tendemos a achar que o nosso conceito de justiça é autónomo das nossas pretensões, que se aplica por igual também ao outro, que este, ao não agir de acordo com essa ideia de justiça, está a ser desonesto e injusto. Logo, que ficam justificados os eventuais nossos comportamentos que se desviem do nosso conceito de justiça original para compensar, para nos defendermos, das pretensões “injustas” do outro. Gera-se, deste modo, uma escalada competitiva em que ambas as partes tentam sobrecompensar aquilo que consideram que perderam, ou que se arriscam a perder, por via das atitudes e comportamentos “injustos” do outro. A médio prazo, ou logo naquela negociação, ambos sairão a perder. E, por absurdo que pareça, tudo pode ter partido de conceitos de justiça produzidos por duas boas consciências. E, muitas vezes, a escalada competitiva inicia-se precisamente porque uma das partes, ou ambas, antecipam que ela vai acontecer…
Pode o leitor perguntar agora: Então, como saímos desta?! Conhece com certeza a já estafada afirmação: Um negócio só é bom se o for para as duas partes; Logo, se dividirem ao meio ambos ficam a ganhar… o mesmo; Não vejo qual é o problema. E eu, caro leitor, contraponho: Ou será que ambos ficam a perder… “o mesmo”. Dividiram o mal “equitativamente” pelas aldeias, parece. Numa próxima negociação vão, ambos, tentar compensar o que perderam. Aliás, porque haverá tendência para ambos, repito, ambos acharem que perderam mais do que era justo, e mais do que o outro… E eis a escalada competitiva, que tem origem em conceitos de justiça supostamente universais, supostamente dissociados dos interesses das partes envolvidas, logo que não se põem em causa. Nem mesmo quando conduzem a relação para o abismo…

Egoísmo criativo
Pretendo, apenas, sublinhar que são só aqueles quatro os limites que referi há pouco que nos devem condicionar: Princípios e valores; Interesses e necessidades; A lei; E as normas da instituição que possamos eventualmente representar. Quer dizer que, por exemplo, hábitos, tradições, o que foi feito em negociações anteriores com o mesmo parceiro, o que outros fazem em circunstâncias semelhantes, ou o que nunca foi negociado, ou outras ideias que se aproximam da de justiça – que são suas diferentes versões -, não têm que ser obrigatoriamente condicionantes ou limitações àquilo que possamos querer negociar.
Ou seja, podemos e precisamos de ser criativos. Devemos inventar o que for necessário, desde que nos interesse. A palavra de ordem em negociação é: Criatividade. Para isso, para que sejamos verdadeiramente criativos e consigamos ser inovadores nos acordos que realizamos, e por estranho que possa parecer, por muito que seja contra o senso comum, a melhor forma de iniciarmos uma negociação é focalizarmo-nos exclusivamente nos nossos interesses e nos dos outros, por mais divergentes e opostos que possam ser.Depois, claro, há que fazer uso da criatividade para fazer propostas que interessem ao outro e que quebrem as rotinas, os hábitos, que rompam com tudo aquilo que, muitas vezes, damos inconscientemente como adquirido e imutável.
Mas não é fácil… É preciso pensar. É preciso sair do quadrado, out of the box, como dizem os ingleses. O primeiro passo é definir com o máximo de clareza e exaustão os interesses e objectivos próprios. Depois, concentrar-se somente nos interesses de ambos, libertando-se de qualquer juízo de valor, de qualquer ideia de justiça sobre as nossas pretensões e as do outro.
Continuemos com o nosso caso da compra do carro: Como se poderá sair dessa questão do desconto que, aparentemente, só pode conduzir a um acordo com perdas para ambos? E que, até, pode facilmente conduzir a um bloqueio e a um não acordo. Para que isto aconteça basta que as expectativas iniciais dos intervenientes estejam muito afastadas, que os seus conceitos de justiça sobre a questão divirjam muito. A palavra de ordem, já vimos, nesta altura é: Focalização exclusiva nos interesses de ambas as parte.
Deixe-me, leitor, dar-lhe mais alguma informação sobre o nosso cliente. Ele é um melómano e o vendedor sabe disso. E sabe também que esse cliente tem o hábito de mandar instalar nos carros que compra aparelhagens sonoras que custam bom dinheiro… Muito melhores do que as de origem.
De posse desta informação adicional, relanço o desafio: Que acordo poderão alcançar, vendedor e cliente, que seja melhor, para ambos, do que simplesmente uma divisão ao meio do desconto proposto inicialmente pelo cliente?…
Uma hipótese que se coloca imediatamente seria o vendedor oferecer uma aparelhagem de qualidade, em vez de ceder no desconto. O cliente receberia uma que valesse, por exemplo, quinhentos euros. Quer dizer, que custasse ao cliente, se a comprasse por sua conta, quinhentos euros. Ela poderia custar ao vendedor, vinda de um seu fornecedor, duzentos e cinquenta euros, por exemplo. Isto em alternativa a conceder a divisão ao meio do desconto de dois por cento, que seria equivalente a um por cento, ou seja, trezentos e cinquenta euros. Ou seja, o vendedor ficaria a ganhar cem euros. Porque só gastaria duzentos e cinquenta euros na aparelhagem, e não trezentos e cinquenta se tivesse que dar o desconto de um por cento. E o cliente ficaria a ganhar mais. Ganharia cento e cinquenta euros porque a aparelhagem lhe teria custado quinhentos euros. Em vez de os gastar, abdica de um desconto de trezentos e cinquenta euros. Quinhentos menos trezentos e cinquenta dá cento e cinquenta.
Assim, em teoria, é um acordo ganho/ganhas. Ambos ficam a ganhar. Não é, caro leitor? Aparentemente é um acordo politicamente correcto, como hoje em dia se diz noutros contextos. No entanto é, apenas, um acordo politicamente correcto, muito civilizado, muito diplomático… Sem dúvida!
De facto, quando dizemos que, tanto cliente como vendedor, ficariam a ganhar mais em comparação com um desconto de um por cento, o que estamos realmente a advogar é, tão somente, que ambos fiquem a perder um pouco menos do que no caso da divisão ao meio do desconto. De facto, já é melhor do que simplesmente “encontrarem-se a meio”… No entanto, continuamos a laborar num enviesamento que resulta da contaminação das nossas mentes pelo maldito conceito de justiça. Continuamos a pensar em termos de divisão ao meio, de divisão equitativa “do mal pelas aldeias”. A divisão ao meio é uma ideia de justiça que aqui serve apenas como um exemplo. Muitas outras ideias de justiça existem… como a tradição, o costume e os hábitos, os acordos anteriores entre os negociadores, o que os outros, eventualmente com mais experiência ou autoridade, fazem, o que nunca foi feito e que logo é encarado como um disparate ou muito arriscado, etc., etc., etc.,…
A divisão ao meio, o que é supostamente justo, continua a ser o nosso ponto de referência, o que nos impede de pensar, sequer, em alternativas de acordo que transcendam a ideia de apenas minimizar as perdas para vendedor e cliente. Se partirmos deste paradigma, só se conseguirá chegar a acordos que minimizam, pior ou melhor, as perdas para ambas as partes, mesmo que ambos fiquem convencidos que obtiveram um acordo equitativo. Serão sempre acordos perco/perdes que geram potencialmente escaladas competitivas em que as partes tentarão compensar as perdas acumuladas ao longo do tempo. E isto resulta, muitas vezes, em acordos ganho/perdes ou perco/ganhas logo, a prazo, em rupturas de elevadas perdas para ambos os intervenientes.
Falo do erro de se pensar que um acordo, só por parecer equitativo, logo será do tipo ganho/ganhas. Mas não! Pode bem ser do tipo perco/perdes. E a solução, ao nível dos princípios, é muito mais simples do que parece à primeira vista: Consiste na libertação, em primeiro lugar, dessa tendência para olharmos o que está em jogo através da nossa lente particular de Justiça, de que há um bolo para dividir que, supostamente, tem o mesmo valor para os negociadores, o que, já agora, nunca é verdade porque nada neste mundo tem o mesmo valor para duas pessoas diferentes. Desde logo, só por este motivo, é um absurdo alguém arrogar-se a posse da ideia do que é justo sobre o que está em jogo… Essa é, liminarmente, uma forma de eregir os interesses próprios a um nível de superior legitimidade em comparação com os dos outros.
E este assunto entronca directamente na questão crucial dos tipos de Atitudes e Estratégias em Negociação. Noutro local abordamos este tema.
Autor do artigo: Gonçalo Coutinho Rodrigues