domingo, 25 de dezembro de 2011

Narcisistas e demagogos


O convívio intenso e longo com o poder tem um poderoso efeito narcotizante. Transforma seres mortais, pessoas simples e humildes, gente com histórias iguais a de seus semelhantes, em pequenos “deuses” de um Olimpo cada vez mais povoado.
A que se deve esse tipo de distorção? À armadilha do falso retrato, da autocontemplação, que prende os homens públicos na moldura de Narciso, aquele que foi condenado pelos deuses a se apaixonar pela própria imagem.
Como conta a lenda, ele tomou-se de amores pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte. Obcecado pelo reflexo, Narciso não mais se afastava da fonte, definhando ali até a morte.
Hoje, vive-se a plena era do Estado-Midiático. Como lembra Roger-Gérard Schwartzenberg, no clássico O Estado-Espetáculo, os profissionais do espetáculo e da política compartilham frequentemente as mesmas atitudes e os mesmos vezos, como se, diante de problemas de representação comparáveis, “eles reagissem recorrendo a procedimentos análogos.”
O Brasil está recheado de narcisistas, pessoas fascinadas pelo seu próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas perderam o poder, mas não o orgulho. Que tipo de mal os narcisistas cometem contra si mesmos e contra a sociedade?
O maior dos males é o da inação, o da inércia, o da perda do sentido de realidade. Presos no simulacro do poder, exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio. Aliás, praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão, malabarismo.
Os malabaristas da política promovem a mistificação das massas, fazendo-as crer que o discurso é a ação, o verbo é a obra, a palavra é sinônimo de verdade. Muitos se transformam em dândis, com seu prazer em surpreender, espantar.
Dizia Baudelaire: “creio que existe na ação política uma certa dose de provocação, por ser preciso suscitar uma reação”.
O dândi quer chamara atenção, provocar, criar impacto. E, não raro, cai no exagero, fazendo da estética sua ação política mais forte. É useiro e vezeiro na arte do exagero. Nele, a verdade acaba mas a história tem sempre continuidade. Por conta da verborragia.
Ademais, a cultura oral é uma das tradições mais ricas de nosso país. Basta uma pequena viagem pela monumental obra do incomparável Luís da Câmara Cascudo, um potiguar boêmio, bonachão e denso, que produziu a mais fecunda e abrangente obra sobre a cultura popular brasileira.
A tradição de oralidade penetrou profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na tribuna parlamentar.
Duas historinhas, muito conhecidas, mostram os polos do discurso tradicional da política. A primeira é a do baiano, embevecido com a retórica complicada, cheia de palavras difíceis, de seu candidato em comício numa pequena cidade interiorana. Não se cansou de bater palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”.
A segunda historinha é a do candidato, que, arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o sentido da liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher os seus caminhos, seus governantes, eleger os seus vereadores, prefeitos e deputados. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso.
No momento certo, tirou o passarinho da gaiola, e com ele na mão direita, jogou o verbo: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é sempre bom) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir soltar esse passarinho, que vai ganhar o céu da liberdade”.
Ao abrir a mão, viu que esmagara o passarinho. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as vaias substituíram os aplausos. Foi um desastre. É sempre assim quando não se controla a emoção. Em se tratando do discurso político, a emoção mata frequentemente a razão.
Juntando-se, então, o narcisista e o demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, tem-se a receita de um perfil que ainda teima em se apresentar às massas nacionais. É o encontro do ruim com o pior, de Narciso com aquela figura canhestra tão bem caracterizada por Chico Anísio, Justo Veríssimo.
E quando isso ocorre, a política volta a ser aquilo que Paul Valéry mais temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem do que lhes dizem respeito”.
Nesses tempos de grande influência da mídia, é bom ter cuidado, porque a espetacularização da política pode significar a ruína dos atores. Não enganam mais como antigamente; são pegos quando escondem o lixo debaixo do tapete; e flagrados quando a maquiagem procura disfarçar a deficiência do pensamento.
Mulheres e homens publicos desses nossos trópicos: reflitam, neste apagar de luzes de 2011, sobre o exercício da representação coletiva. Assumam o compromisso de trazer a verdade para a seara da política. O Estado-Espetáculo aprecia os efeitos mágicos do circo político.
Como dizia Luis XIV, “os povos gostam do espetáculo; através dele, dominamos seu espírito e seu coração”. Mas há um limite para tudo. Um dia, mais cedo ou mais tarde, o povo, cansado de ver tanto malabarismo, fará a mágica que nenhum representante gostaria de ver: mandá-lo de volta para sua casa sem o passaporte do mandato popular.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professsor titular da USP, é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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