domingo, 29 de dezembro de 2013

Cartas de Seattle: Se Drummond fosse daqui, por Melissa de Andrade


Se Drummond estivesse sentado de costas para o canal que passa pelo bairro de Fremont, e não para a praia de Copacabana, a pichação da madrugada do Natal poderia ter sido vista como uma “intervenção artística”, e não como vandalismo. É que praticamente todo dia tem alguém fazendo graça com uma escultura famosa do bairro – e a gaiatice foi incorporada à cultura local.
Claro que não estamos falando de uma personalidade da cidade. Roubar os óculos de Carlos Drummond de Andrade ou pichar a estátua inteira, como fizeram esta semana, é considerado um grande desrespeito por todos que amam o grande poeta. Os moradores do bairro correm logo para limpar o ponto turístico do Posto 6.
Em Seattle, os turistas ficam decepcionados quando vão ver “Waiting for the Interuban” (algo como “esperando pelo trem interurbano”) e encontra incólume o grupo de seis adultos, um bebê e um cachorro. A espera eterna dos transeuntes desconhecidos fica mais animada com as invencionices anônimas: cachecóis, guarda-chuvas, lenço de papel, camisetas, perucas coloridas, chapéus, flores, bolas de aniversário, fantasia. E pichação. Pois é, às vezes tem pichação também.

"Waiting for the Interuban" em Seattle

Seja uma intervenção política, seja uma intervenção transgressora, o fato é que “a escultura do ponto de ônibus”, como é erroneamente chamada, não costuma gerar protestos. Costuma é retratar protestos. Às vezes bem-humorados, às vezes somente coloridos, às vezes obscuros.
A própria escultura esconde seus manifestos. Atenção para o cachorro da figura – sua feição humana tem muita semelhança com o prefeito da época, que era contra a escultura. Ou seria tudo uma mera coincidência?
Tanto em Seattle quanto no Rio, o ataque a monumentos públicos fala muito da alma da cidade. Sociólogos de plantão, está aberto o debate.

Melissa de Andrade é jornalista com mestrado em Negócios Digitais no Reino Unido. Ama teatro, gérberas cor de laranja e seus três gatinhos. Atua como estrategista de Conteúdo e de Mídias Sociais em Seattle, de onde mantém o blog Preview e, às sextas, escreve para o Blog do Noblat.

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