sábado, 1 de setembro de 2012

Coisa incrível, típica do Brasil: as cidades que nadam em dinheiro do petróleo crescem MENOS do que as outras!



O AVESSO DO PROGRESSO -- Canal que corta a favela de Nova Holanda, uma das que mais cresceram em Macaé: base de operações da Petrobrás, a cidade atraiu empresas, universidades e hotéis de luxo, mas, sem nenhum planejamento para a nova era que veio com o pré-sal, assiste ao galopante aumento dos índices de criminalidade e favelização (Foto: Marcos Michael)
O AVESSO DO PROGRESSO -- Canal que corta a favela de Nova Holanda, uma das que mais cresceram em Macaé (RJ): base de operações da Petrobrás, a cidade atraiu empresas, universidades e hotéis de luxo, mas, sem nenhum planejamento para a nova era que veio com o pré-sal, assiste ao galopante aumento dos índices de criminalidade e favelização (Foto: Marcos Michael)
Reportagem de Marcelo Bortoloti e Helena Borges, com colaboração de Gabriela Romero, publicada na edição impressa de VEJA

AONDE FOI A RIQUEZA DO PETRÓLEO?
As cidades premiadas com os royalties cresceram menos do que as outras. Mas ainda podem escapar da “maldição do ouro negro”

Desde a sua descoberta, as gigantescas reservas de petróleo nas profundezas do pré-sal vêm sendo celebradas como um bilhete de loteria premiado. Os primeiros dividendos dessa espetacular riqueza, que pode somar à economia brasileira o equivalente a todo o PIB da Bolívia, já começaram a reforçar o caixa de um conjunto de pequenos e médios municípios entre o norte fluminense, o sul capixaba e o litoral paulista.
Nessa rota, de onde emergem 85% da produção nacional, VEJA visitou as dez cidades que ao longo da última década mais foram beneficiadas pelo dinheiro dos royalties – fonte que não secará tão cedo graças à sua privilegiada posição no mapa do petróleo. O dinheiro que jorra em seus cofres já representa até 80% de tudo o que arrecadam.
Embora as perspectivas sejam reluzentes, o que se vê nesse naco do país NÃO são imagens de desenvolvimento a todo o vapor. Numa comparação caricata, a história desses municípios faz lembrar, ao menos até agora, a daquele felizardo apostador que ganhou uma bolada formidável, mas, sem saber o que fazer com ela, desperdiçou-a na mesma velocidade com que a embolsou.

Na rota da riqueza (Clique para ver a imagem em tamanho maior)
Na rota da riqueza (Clique para ver a imagem em tamanho maior)
A história está cheia de exemplos de cidades e países que, repentinamente inundados com o dinheiro fácil dos recursos naturais, negligenciaram a oportunidade de investir na melhoria do nível educacional de sua população e na modernização de suas economias.
Mal explorado, esse tipo de riqueza acaba contribuindo para o surgimento de sistemas políticos nocivos, fundados sobre as bases do assistencialismo. Onde essa maldição fez e se faz presente – seja na Potosí que transbordava de prata no século XVII, seja no Zimbábue dizimado pela guerra em torno dos diamantes ou na Venezuela convertida em palco de populismo e miséria -, perdem os cidadãos e perde a democracia.
No eldorado brasileiro do pré-sal, território onde, se tudo der certo, o PIB pode crescer em ritmo chinês, a maldição do petróleo está à espreita. “O que se vê nesses lados do Brasil é típico de lugares onde as instituições ainda não são suficientemente sólidas para lidar com uma mudança tão grande de patamar”, explica o economista Fernando Postali, da Universidade de São Paulo (USP).
Postali é autor de um estudo que comparou a evolução da economia em cidades de mesmo tamanho dentro e fora do raio do petróleo, baseado em dados de 1996 a 2005. A conclusão é espantosa: justamente as que receberam royalties cresceram em ritmo mais lento do que as outras que estão distantes dessa riqueza.
TRATORES PARA O POVO -- O ex-promotor Lourival do Nascimento, nomeado interventor em Presidente Kennedy - município de 10.000 habitantes no litoral do Espírito Santo -, assumiu o comando depois que o prefeito, seis secretários e quatro vereadores foram presos pela Polícia Federal por contratação irregular de funcionários e fraudes em licitações. "Fiquei abismado ao saber que a prefeitura pagava conta de farmácia dos moradores e oferecia, de graça, até frota de tratores aos fazendeiros da região. Não havia controle nenhum do dinheiro público", diz Lourival. Ruas de terra batida e um número assustador de crianças fora da escola são um retrato dos desmandos (Foto: Marcos Michael)
TRATORES PARA O POVO -- O ex-promotor Lourival do Nascimento, nomeado interventor em Presidente Kennedy - município de 10.000 habitantes no litoral do Espírito Santo -, assumiu o comando depois que o prefeito, seis secretários e quatro vereadores foram presos pela Polícia Federal por contratação irregular de funcionários e fraudes em licitações. "Fiquei abismado ao saber que a prefeitura pagava conta de farmácia dos moradores e oferecia, de graça, até frota de tratores aos fazendeiros da região. Não havia controle nenhum do dinheiro público", diz Lourival. Ruas de terra batida e um número assustador de crianças fora da escola são um retrato dos desmandos (Foto: Marcos Michael)
Um levantamento da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) lança luz sobre as fragilidades nesses municípios visitados por VEJA. Muitos não avançaram e outros até retrocederam naquilo que é vital para perpetuar o desenvolvimento. Em sete deles, o número de postos de trabalho aumentou de forma inexpressiva, ou mesmo encolheu. A maioria também viu sua posição despencar nos rankings nacionais que medem a qualidade da saúde e da educação – nessa última lista, Campos dos Goytacazes, por exemplo, caiu 1000 posições desde 2000, segundo a Firjan.
Recordista na arrecadação de royalties entre essas dez cidades, Campos é também campeã em ações de improbidade administrativa entre os municípios visitados. Desde 2001, é alvo de 68 processos. Isso ajuda a entender por que, nos cálculos do professor Fernando Postali, a cidade perdeu a chance de somar ao seu PIB per capita 1,3% por ano na última década.
Ali, a prefeita Rosinha Garotinho – que tenta a reeleição depois que seu marido, o ex-governador Anthony Garotinho, administrou a cidade por dois mandatos na década de 90 – lotou as repartições de funcionários com cargos de confiança (são 1000 deles, o dobro dos existentes na Alemanha), distribui mensalmente 2,5 milhões de reais em benefícios a famílias escolhidas por critérios pouco transparentes e torrou 80 milhões de reais para erguer um sambódromo.
Outra das cidades na rota do pré-sal, Presidente Kennedy, no Espírito Santo, tornou-se palco tão escancarado dos desmandos com o dinheiro público que, em abril, a Polícia Federal prendeu o prefeito, seis secretários e quatro vereadores por contratações irregulares e fraude em licitações.
Essa turma não demonstrava nenhuma cerimônia com as verbas oficiais: pagava conta de farmácia dos moradores, dava aos produtores rurais ração à vontade e bancava uma frota de tratores que prestava serviço às fazendas. Nomeado interventor, o ex-promotor Lourival do Nascimento se assustou ao chegar ao município de 10000 habitantes e encontrar as ruas de terra batida e tantas crianças fora da escola. Ele alerta: “Sem educação, o dinheiro do petróleo certamente escorrerá pelo ralo”.

SOBRA DINHEIRO, FALTA SAÚDE -- Campeão brasileiro em arrecadação de royalties, Campos dos Goytacazes, comandado pela dinastia Garotinho, é um exemplo de município que retrocedeu nos principais indicadores. Desde 2000, a situação da saúde ali despencou 1000 posições no ranking nacional. O neurocirurgião Eraldo Ribeiro Filho trabalha no maior hospital da cidade, onde se acumulam mazelas: há carência de leitos, chove na sala dos médicos e falta até material para a assepsia dos pacientes. Cirurgias de emergência, só para quem espera mais de um mês na fila. "Ninguém viu a cor do dinheiro dos royalties por aqui", lamenta o neurocirurgião (Foto: Marcos Michael)
SOBRA DINHEIRO, FALTA SAÚDE -- Campeão brasileiro em arrecadação de royalties, Campos dos Goytacazes, comandado pela dinastia Garotinho, é um exemplo de município que retrocedeu nos principais indicadores. Desde 2000, a situação da saúde ali despencou 1000 posições no ranking nacional. O neurocirurgião Eraldo Ribeiro Filho trabalha no maior hospital da cidade, onde se acumulam mazelas: há carência de leitos, chove na sala dos médicos e falta até material para a assepsia dos pacientes. Cirurgias de emergência, só para quem espera mais de um mês na fila. "Ninguém viu a cor do dinheiro dos royalties por aqui", lamenta o neurocirurgião (Foto: Marcos Michael)
Em meio a esse tipo de cenário, as autoridades locais reagem com previsível espanto à questão básica que a Firjan trouxe à tona em recente encontro de prefeitos, secretários e empresários interessados em investir nas cidades do pré-sal.
Indagou-se a esses gestores qual era o plano que tinham para o crescimento que se avistava (só em investimentos privados, a região deve receber 14 bilhões de reais até 2014). Fez-se silêncio. “Ficou claro que esses municípios não têm um planejamento nem mesmo para o futuro próximo. Você pergunta, por exemplo: `Onde vão se instalar as empresas que virão?’. Ninguém sabe responder”, diz o economista Cristiano Prado, gerente de competitividade da Firjan.
Alguns políticos chegam a revelar até mesmo aversão à ideia do progresso, justificando que suas cidades estão ameaçadas de perder “o ar do interior”. Numa miopia irresponsável, preferem deixar tudo como está.
O resultado é o que se observa em Macaé – um emblemático cartão-postal do crescimento desordenado na trilha do pré-sal. Próxima à base de exploração da Petrobras e ponto de partida para o traslado de helicópteros rumo ao alto-mar, a cidade de 210000 habitantes é uma das únicas duas entre as dez visitadas que não só recebem royalties como também sediam atividades diretamente ligadas ao petróleo (a outra é Rio das Ostras).
PARA TURISTA VER -- Em 2004, a prefeitura investiu 12 milhões de reais na reforma do calçadão à beira-mar. Não fez economia. Até piso de porcelanato foi usado como revestimento. Dizia-se que a obra iniciaria um novo ciclo de investimentos com o objetivo de tornar o município uma potência turística. Mas nada do anunciado aconteceu, e o calçadão foi se deteriorando. Sem uma boa infraestrutura, Rio das Ostras acabou relegado à posição de cidade-dormitório da vizinha Macaé (Foto: Marcos Michael)
PARA TURISTA VER -- Em 2004, a prefeitura investiu 12 milhões de reais na reforma do calçadão à beira-mar. Não fez economia. Até piso de porcelanato foi usado como revestimento. Dizia-se que a obra iniciaria um novo ciclo de investimentos com o objetivo de tornar o município uma potência turística. Mas nada do anunciado aconteceu, e o calçadão foi se deteriorando. Sem uma boa infraestrutura, Rio das Ostras acabou relegado à posição de cidade-dormitório da vizinha Macaé (Foto: Marcos Michael)
Desde 1980, Macaé recebeu mais de 5000 empresas, quinze cursos de instituições federais de nível superior, centros de pesquisa de primeira linha (como o da multinacional francesa Schlumberger) e ainda viu florescer bons restaurantes e hotéis de luxo. A população disparou nesse período: 174%. Houve avanços, portanto, mas a inação pública e a ausência de qualquer planejamento fizeram dobrar o número de pessoas que vivem em favelas, e o índice de homicídios chegou a 51 por 100000 habitantes, o dobro do registrado no Rio de Janeiro.
Há uma década, a cobertura da rede de esgoto está estacionada em 66% e a de fornecimento de água caiu 10%. Como é praxe no discurso dos governantes brasileiros e muito comum no trajeto do pré-sal, o secretário municipal de desenvolvimento, Clinton Santos, lança a culpa sobre terceiros: “A Petrobras só faz planos a curto prazo, e é difícil acompanhar essa dinâmica”.
Os raros municípios que têm aproveitado o dinheiro do petróleo para crescer sobre uma base sólida trilham caminho semelhante ao de países mais bem-sucedidos nesse campo – todos usaram esse dinheiro para fortalecer uma vocação econômica natural.
É o que Ilhabela, no litoral paulista, e Búzios, no Rio, começam a fazer com o turismo, por exemplo. A experiência reforça a ideia de que, para multiplicar essa riqueza, não há que inventar a roda, mas obedecer com disciplina à cartilha universalmente aceita da boa gestão.
UM PLANO PARA O FUTURO -- Exceção entre as cidades na rota do pré-sal, Ilhabela, no litoral paulista, traçou uma estratégia de desenvolvimento para os próximos anos. A ideia é fomentar o turismo, vocação natural do município. Uma das iniciativas é construir píeres para incentivar o transporte entre as praias e desafogar o trânsito. Em paralelo, há investimentos maciços em educação e treinamento de mão de obra, medidas fundamentais para que o balneário atraia novos negócios (Foto: Marcos Michael)
UM PLANO PARA O FUTURO -- Exceção entre as cidades na rota do pré-sal, Ilhabela, no litoral paulista, traçou uma estratégia de desenvolvimento para os próximos anos. A ideia é fomentar o turismo, vocação natural do município. Uma das iniciativas é construir píeres para incentivar o transporte entre as praias e desafogar o trânsito. Em paralelo, há investimentos maciços em educação e treinamento de mão de obra, medidas fundamentais para que o balneário atraia novos negócios (Foto: Marcos Michael)
A Noruega só conseguiu transformar-se na meca da alta tecnologia na indústria do petróleo treinando obsessivamente seus quadros. Fez tudo com respeito quase religioso a metas e prazos. No Brasil, o primeiro passo é regulamentar o uso dos royalties, que, pela lei atual, podem ser investidos em quase tudo, à exceção do pagamento de dívidas e de pessoal (mas até essa restrição é driblada com subterfúgios como as contratações temporárias, como VEJA observou). “É preciso estabelecer regras que canalizem os recursos para saúde, educação e infraestrutura”, enfatiza a promotora Nícia Regina Sampaio, do Ministério Público do Espírito Santo, coordenadora de um programa que forma gestores e informa a população sobre as verbas que inundam o caixa de seus municípios – uma boa iniciativa.
É a transparência o que impedirá a sobrevivência dos regimes retrógrados que se perpetuam alimentando-se do ouro negro. E é o bom planejamento o que pode fazer com que ele se converta, enfim, em riqueza de verdade.

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