quinta-feira, 12 de julho de 2012

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA Rebeca e o Avião



CARLOS VIEIRA
No exato momento em que escrevo estou voando pela TAM com destino a Aracaju. Um voo sem escalas. É uma manhã de quinta-feira de julho. Um céu entremeado de um azul-piscina, com nuvens esparsas ainda sem delinear carneirinhos, como via quando criança. Criança, criança linda ao meu lado. Rosto com traços indígenos mesclado com aparência japonesa. Rebeca é minha parceira de viagem. Estamos na primeira fila, ela na janela e eu no corredor. Uma poltrona vazia nos separa. Rebeca tem a suavidade da infância, denunciando um fácies meio ensimesmado, parecendo receosa de alguma ameaçada. Ouso me apresentar:
- Tudo bem com você? (no começo da decolagem)
- Tô com medo, é a primeira vez, nunca viajei de avião... E se ele (o avião) não tiver forças para subir, como vai ser?
De imediato pedi sua mãozinha e a segurei na minha. Apertei bem para quem sabe, através da minha linguagem corporal, transmitir gesto afetivo de ternura e de segurança dentro da segurança relativa da vida. Ele me pareceu que gostou, sorriu, mostrou um sorriso pálido, mas mesclado de um certo conforto.
Estamos subindo, a aeronave decolando, alguma turbulência implícita. Meus olhos nos olhos de Rebeca; seu olharzinho no meu. Mãos apertadas, corações em parceria. Naquele momento realizei o que o poeta chama de “cumplicidade amorosa” numa situação na qual alguém espera um receptáculo para sua angústia. Angústia de morte, terror do desconhecido, uma menina inconsciente ainda da condição de mortalidade humana. Olhos nos olhos, volto a falar com minha companheirinha de voo:
- E aí, legal a subida, não? Olha cidade lá embaixo, olha o lago, olha a ponte. Eu duvido que você já tenha visto a cidade dessa altura!
- Você já voou muito?
- Vou lhe revelar um segredo, Rebeca. Eu atualmente voo muito, mas já tive muito medo, mais do que você, sabia? No entanto um dia pensei: isso aqui é mais seguro do que viajar lá embaixo de automóvel; o avião foi feito para voar como os pássaros. Ele tem a mesma artimanha dos passarinhos: abrem as asas e voam. Eu tinha medo, mas acho que no fundo era medo de morrer, concorda?
- É, tio, é mesmo. É medo de morrer. E eu ainda sou muito pequena. Eu quero viver muito, como você, ou mais do que você.
- E vai viver sim, vai viver muito.
O olhar de Rebeca mostrava já, “a calma do desespero”. Saquei que aquela menina moça, de uns dez anos sofria em função da percepção da “vulnerabilidade humana”. Claro que ela não tinha a consciência verbal, mas intuía através do sintoma da sua angústia. De repente, mas que de repente, ela fez um movimento tremular como quem entrava em espanto.
- Voltei segurar a sua mãozinha e falei: apavorou-se, Rebeca?
- Tá tremendo, disse ela, o avião está tremendo. Será que vai cair? O que é isso?
- Isso se chama turbulência. São movimentos que o avião faz quando tá ventando muito, Outra coisa: sabe os tremores que o carro faz ao passar em algum buraquinho na estrada, em algum asfalto com defeito? Aqui em cima também tem buraquinhos. Viu, passou!
- É mesmo tio, passou. Posso ouvir música no meu Ipod? Não prejudica o motor do avião? Dizem que a energia dos aparelhos podem desequilibrar o avião. É verdade, tio?
- Você não escutou minutos atrás que a partir de agora podemos usar aparelhos eletrônicos? Pode e deve ouvir sua musiquinha.
Rebeca mais alentada, mais descontraída, recostou a poltrona e foi ouvir sua música. O voo era ótimo, um belo deslizar na estrada virtual em o céu e a terra.
-Tio, exclamou a menina dos olhos de japonês e de carinha de índio, segura novamente na minha mão enquanto ouço minha música.
A linguagem do corpo, a comunicação que se estabelece aquém das palavras, às vezes é mais verdadeira, mais profunda, transmite mais conforto do que a fala. O corpo não mente, não escamoteia. Rebeca não queria conversar, queria presença afetiva através de gestos, atitudes, olho no olho, mão na mão: Rebeca queria “colo”. O colo que transmite consideração, respeito, amor, cumplicidade e mais do que isso – parceria afetiva. O pavor da morte, penso, ficou adiado; a angústia da finitude, esquecida; a fobia deu lugar ao medo e o medo deu espaço para conviver com o “risco da vida”. Viver é mesmo perigoso, cantava em prosa o nosso Guimarães através da sabedoria do personagem, Riobaldo. 
Rebeca retirou o fone de ouvido, foi ao banheiro, olhava pela janela a beleza do Universo, sorria para mim, sorriso que devolvia a beleza de sua juventude, seus olhinhos negros e seus cabelos pretos, lisos, escorrendo sobre sua testa como água cristalina, caído numa cascata mostrando a beleza de um arco-íris.
- Estamos começando a descer Rebeca, olha o mar! O mar é bonito, não acha? Olha como ele é colorido!
- Tio, vou lhe contar um segredinho, não fala para ninguém: eu nunca tinha visto o mar, bonito, não?
-Rebeca, você está começando a ver como a vida é bela – você já pode voar, ver o mar e mais, conhecer o mundo. 
-É, tio, segura na minha mão pra gente descer!
A aeronave fez um pouso perfeito. Logo após nos despedimos e Rebeca exclamou:
- Amanhã pela manhã vou ver o mar e de lá vou ver um avião no céu. Obrigado por tudo.
Rebeca me fez pensar num poema de Affonso Romano de Sant’Anna.
No Labirinto
“As perguntas que, criança eu me fazia/ continuam na idade adulta/ a prosperar./ O labirinto agora me é familiar/ tenho conversado com o Minotauro e Ariadne/ tem infindáveis novelos/ para me emprestar./Sou capaz de guiar um cego/ por algumas quadras/ e alguns sinais abstratos/ chego a decifrar./ Habito o mistério que me habita/ e isto/ - é caminhar.”Do livro “Sísifo desce a Montanha”. Ed. Rocco, RJ, 2011.
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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