sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Padre Anchieta: cristão ou judeu?

ANITA NOVINSKY

Devido à sua origem judaica, a família de Anchieta foi penitenciada pela Inquisição, e ele próprio sofreu, ao ser recusado por um seminário
A notícia de que o papa Francisco acolheu o processo de canonização do padre José de Anchieta lembrou-me de um fato raramente mencionado: as suas origens judaicas.
José de Anchieta nasceu em 1534, nas ilhas Canárias, colônia da Espanha povoada por numerosos cristãos novos (judeus convertidos ao catolicismo) que, em segredo, praticavam a antiga religião judaica.
A Inquisição muito cedo iniciou ali a perseguição dos suspeitos de judaísmo. Anchieta teve sua própria família penitenciada: um tataravô, que devia ser um fervoroso judaizante, foi queimado, e um avô perseguido. Ele próprio sofreu, pois quis entrar para um seminário na Espanha, mas foi recusado.
Não sabemos em que medida os fatos que Anchieta presenciou influíram na formação da sua personalidade e caráter, se herdou algum ensinamento da mãe, cristã nova, e se manteve algum sentimento para com a fé dos seus antepassados.
José de Anchieta foi para Portugal quando tinha 14 anos. Foi aceito como noviço pela Companhia de Jesus, mesmo que esta proibisse a entrada de judeus, conversos, negros e índios. Chegou ao Brasil em 1553, participando, em 25 de janeiro do ano seguinte, da primeira missa no atual Pateo do Collegio, núcleo da futura cidade de São Paulo, da qual é considerado fundador, juntamente com o Padre Manoel da Nóbrega.
A principal missão a que se dedicou foi a catequização dos índios. Foi poeta, teatrólogo, gramático e tinha uma especial inclinação para a medicina, profissão tradicional entre judeus. Realizou inúmeras curas e alcançou na Companhia de Jesus o mais alto posto, como provincial da ordem no Brasil.
Para entender como Anchieta e outros luso-espanhóis chegaram a se tornar altos expoentes do catolicismo, é preciso que tenhamos em mente o enorme trauma causado pela conversão forçada ao catolicismo de todos os judeus de Portugal, que foi seguida de numerosas leis que proibiam os convertidos de participar de cargos públicos, de servir o exército, de cursar universidade e de pertencer a ordens religiosas.
Em Portugal, as leis eram burladas, os documentos falsificados ou destruídos ou altas somas eram pagas aos agentes inquisitoriais para adquirir "certificados de limpeza". A sociedade ficou dividida entre "puros" e "impuros", o que em certa medida envenenou as relações entre os cristãos "velhos" e novos.
Mas a maior parte dos cristãos novos conseguiu ultrapassar as barreiras discriminatórias. Muitos se tornaram fiéis católicos e alguns mesmo religiosos cristãos, ascendendo socialmente, como José de Anchieta. Procuravam colocar os filhos na igreja, como forma de diminuir o risco de serem presos. Seus descendentes que vieram para o Brasil constituem parte importante da população de nosso país.
Entretanto, é curioso lembrar que, segundo a lei judaica, quem nasce judeu nunca deixará de ser judeu, mesmo se convertido, pois trata-se de uma questão de alma que, aos olhos de Deus, jamais poderá mudar. Os nazistas também pensavam assim, tanto que Edith Stein, canonizada como santa Teresa Benedita da Cruz pelo mesmo papa João Paulo 2º que beatificou Anchieta em 1980, foi morta em Auschwitz por ser judia, embora convertida e freira católica.

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